sexta-feira, 26 de setembro de 2008

outono

o outono já chegou há muito tempo,
e ainda há quinze dias era verão.
caiem-me as folhas.

estou menos vivo que morto,
é tudo lento e difícil.
caiem-me as folhas.

se ao menos sobre as folhas
que me caiem
o meu fruto caísse
e dele eu renascesse.

bem sei.
é sempre assim
que vejo a vida
a cada chegada do outono:
mortiça, dormente, decadente,
como uma estrela cadente
esmorecida.




sábado, 20 de setembro de 2008

o príncipe

-papá, quando eu for grande, vou querer ter um namorado, mas quero que ele seja um rapaz bonito. só quero rapazes bonitos. e sou eu que escolho...
- acho que fazes muito bem, filhota.
- e onde é que eu tenho de ir?
- não vais ter de ir a nenhum lado especial. eles aparecem...
- aparecem? e o que é que eles dizem?...
- cada um diz uma coisa diferente. tu vais achar graça a uns e a outros não. não te preocupes, quando isso acontecer é mais fácil.
- o príncipe vem sempre no fim da estória, não vem?
- umas vezes vem, outras não sei. mas a nossa vida tem muitas estórias. em alguma delas há-de vir o príncipe.

(diálogo com a minha filha, de 4 anos)

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a ajuda


às vezes, a ajuda toma caminhos imprevistos.
recordo muitas vezes o bugueiro Pedro, que me levava a passear nas dunas de Cumbuco. "com emoção, ou sem emoção?" emocionante sempre! fizemos amizade bem cedo. quando podia, quando o búgui não tinha clientes, o Pedro aparecia: "doutô, quer vir em Fortaleza?" outras vezes: "doutô, quer dar um passeiinho de búgui - não paga nada - quer ir comigo visitar um amigo meu, na mata?" e eu ia, é claro. eu não resisto às tentações de verdade. e lá íamos nós, sempre a falar, sempre a ouvir as estórias da aldeia de Caucaia, onde o Pedro tinha sua casa, mulher, filhos, galinhas caipiras, cachorros e vizinhos. uma aldeia que merecia bem o seu nome nativo: "Caucaia": "clareira na mata". uma mata negra e muda depois do pôr do sol.
até que notei, dias depois, que o Pedro andava encabulado, tristonho, cara de sofrido. não era o mesmo Pedro. aí, eu perguntei: "- Pedro, o que é que se passa com você?"
"- sabe, doutô, eu todas as noites tenho que ir no aeroporto pegar o pessoal que chega no vôo das 4 da manhã. quando eu vou prá cama, eu tenho medo de não acordar na hora e tem noites que nem durmo".
senti uma ternura imensa pelo nativo Pedro. e disse: "Pedro, fique tranquilo, eu vou resolver seu problema!"
no dia que pude, dei um pulo em Fortaleza. numa loja de fotografia eu vi um despertador lindo, moderno, de pilhas, aquela tentação. pensei: vou oferecer ao Pedro. vai ficar contente. é caro, é bonito, ele não vai esquecer mais esse momento. e se bem o pensei melhor o fiz. apareci em Cumbuco com um embrulho bem bonito. o Pedro abriu. ficou radiante, feliz, não sabia muito bem onde esconder a sua gratidão. e eu achei barato os 20 euros para tão encantadora alegria.
no dia seguinte o Pedro andava radiante, solto, dormido, feliz.
mas os dias passaram e o Pedro fechou de novo. andava esquivo, fugia do contacto, cumprimentava e sumia. pensei que andasse cheio de trabalho e solicitação. mas esse estranho comportamento persistia. até que decidi tirar a limpo a situação. "Pedro, você anda meio fugido da gente, quer ver que o despertador não funciona mais?.." e respondeu, como se desse um pulo: "funciona, sim, doutô, funciona muito bem. eu agora durmo bem e acordo na hora..."
dei uma resposta de silêncio incrédulo. o Pedro entendeu na minha cara e explicou o que faltava explicar:
"- só tem um problema: quando eu acordo, todo o mundo acorda!"


terça-feira, 16 de setembro de 2008

o mago

certo dia tirei-me de clichés e preconceitos e fui visitar a casa-museu de um feiticeiro reformado, ali para as bandas de Lugo. o home acolheu-nos de boa mente e logo começou o foguetório das suas artes. que tinha 300 anos de vida, que era capaz de voar, enfim. enquanto ele exibia as suas gabanças, acompanhadas de vasta coleção de fotos e artigos de jornais, eu passava os olhos pelo estendal de ervas, patas de insetos e bichos repelentes, mezinhas, poções, pós, potes e almofarizes, receitas e esconjuros, livros da melhor gente da cultura e das artes: um museu a sério.
e eu bebia na fonte o que a bica botava.
vendo-me interessado e curioso, o home mandou-me uma estocada e quase me atira ao tapete:
- sabes de onde vem o meu poder?
fiquei sem resposta, ante tantas hipóteses que me passavam pola mente. após um interlúdio já estudado, respondeu à própria pergunta rapando do boné que trazia na cabeça e pondo-me a testa dele na frente dos meus olhos:

- daqui!
e mostra um par de corninhos, um de cada lado da testa, quase simétricos, que trazia recatados no seu boné.

a Bíblia passou-se-me de repente pelos olhos de dentro: tamém a Moisés o pintam com uns cornos assim!

aí, passei ao contra-ataque:

- Manolo, cando eu entrei ali pola porta vi cousas de Deus ao lado direito e cousas do Diabo na vitrine da esquerda...

- ...e sabes porquê? - perguntou triunfante.
- ora, respondi eu, a porta da tua casa é como entrar dentro da gente. Deus e o Diabo fazem parte da nossa natureza!

a reação do home foi de incredulidade. olhou pra mim de cima abaixo e perguntou:
- tu que fazes? és vidente? filósofo?
- gosto de entender as pessoas, só isso.

quem ia comigo já não aturava mais a conversa e deu coa língua nos dentes:
- ele é psiquiatra!

fiz uma cara de zangado, mas o mal estava feito.

a conversa mudou de figura. o impressionante feiticeiro entrou em confissão. contou como tudo começara, ainda jovem. cousas difíceis de entender se tinham passado co ele. chegavam-lhe de outros mundos vozes e influências. andara polos médicos, sem que lhe dessem solução às dúvidas, incertezas, enigmas e temores. começou a frequentar congressos de medicina, de literatura e de cultura e arte, procurando respostas. tornou-se amigo de figuras de renome e influência.
a fama dos seus contactos com experiências além do real fez que o procurassem cada vez mais e de mais longe. a resposta encontrou-a ajudando os outros.

hoje é ele mesmo um museu na sua terra.

sábado, 13 de setembro de 2008

pagar a dobrar

esta coisa de ser contribuinte a 40% chateia-me um bocado. não que eu não queira contribuir, sou até um contribuinte frequentador e assíduo. o que sucede é que não ganho nada com isso, só perco.
vou levar a pequena à escola, e o que sucede: há um preço para cada escalão de IRS. e, obviamente, eu que já paguei mais impostos que os outros, tenho que pagar mais pelo mesmo serviço.
vou ao hospital curar um panarício, levar uns pontos no sobrolho, investigar de onde vem a minha tosse, e o que sucede: há uma taxa moderadora para mim, que contribuo a 40%, e um cidadão que contribua a 10%, ou menos, não paga taxa nenhuma e ainda se acha com direitos especiais porque "desconta".
e poderia multiplicar os exemplos desta história do preço dos serviços, mas não me apetece.
feita a tal distribuição corretora dos rendimentos proporcionada pelo fisco, não será lógico que o preço dos serviços seja igual no fim? ou então, já que tenho de pagar mais pelo serviço, que este me seja prestado com um plus de qualidade? pois a verdade é que não só não tenho plus nenhum como ainda me tratam abaixo de cão.

imaginem que tínhamos de pagar impostos para sustentar uma rede de supermercados públicos.
lá vinha o mesmo raciocínio: aquele paga mais impostos, logo tem que levar a carne, os ovos, o peixe e a hortaliça pelo escalão do IRS que paga.

não seria melhor mandar os impostos às urtigas? já esteve mais longe. a inveja aos "altos rendimentos" alastra. é proibido ser rico ou viver desafogado. a ideologia pobretana impera.
impõem um teto às reformas. descontámos para 100, dão-nos 50.
o problema é que se acabarem os "ricos" acaba a receita dos impostos. e ficam mais pobres os que já são e os que ainda não são.

e até que era bem feita.





quarta-feira, 10 de setembro de 2008

abaixo de cão

não se lembre o cidadão de estar doente e precisar de entrar num hospital português para consulta, urgência ou internamento. tem de imediato início um demolidor processo de despersonalização. habituado a ser tratado pelo título ou, vá lá, pelo nome de família, passa a ser tratado pelo primeiro nome, na melhor das hipóteses com "senhor" ou "senhora" atrás. o professor catedrático passa a ser o "senhor José", o médico o "senhor João", o advogado o "senhor Francisco", e assim por diante. uma vez internado, recusam-lhe o uso do pijama pessoal, tendo de conformar-se a usar uma espécie de bata em cima do pêlo. não pode servir-se do telemóvel nem do computador portátil. e em tudo o resto a pessoa é reduzida à sua máxima insignificância - o nível zero.
eu não concordo.
dizem que isso é feito em nome da "igualdade". ora, eu essa igualdade não a aceito. em primeiro lugar, porque, sendo todos iguais em direitos, deveres e oportunidades, somos também todos diferentes uns dos outros - e a isso se chama personalidade, que consiste em cada um ser o que é e aquilo que faz e constrói; em segundo lugar, porque essa igualdade é obtida à custa de uns pagarem mais impostos e outros menos, não cabendo a quem paga menos tratar dessa maneira os que pagam mais; em terceiro lugar, porque a igualdade tem que ser afinada por cima e não por baixo - é preciso que os que não são doutores, nem engenheiros, nem professores-doutores, nem nada disso, sejam tratados pela bitola de cima, nunca os mais diferenciados serem tratados pela bitola de baixo.
e nem só os doutores, engenheiros, advogados e professores se podem queixar. o cidadão comum, habituado a que lhe chamem "Rodrigues", "Pereira", "Sampaio", sei lá, tem de conformar-se a que o tratem por José, Luís, António, Sebastião ou Francisco, Aurora, Maria ou Edviges. e lá por não ser "doutor" não quer dizer que não esteja habituado a padrões de vida, tratamento pessoal e maneiras muito acima da bitola hospitalar. e que não pague altíssimos impostos para que essa gentinha, que assim os trata, possa ter emprego.
mas o que a mim me espanta mais, no meio da nossa cultura hospitalar, é que qualquer funcionário com um desses cursos pseudo-superiores logo exija que o tratem por "doutor" - a todo o mundo e aos utentes a quem trata por senhor José e assim.

tenho muita pena, mas dessa esquerdice eu não sofro.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

descobrir a pólvora

todos os dias somos bombardeados com a descoberta de um novo gene. agora foi a vez do gene da fidelidade conjugal masculina. apetece-me perguntar: - cadê o gene da fidelidade conjugal feminina? estudaram a coisa no rato, mas penso que devem, de seguida e já, fazer o mesmo na rata. o vocabulário vernáculo está cheio de cornos e cornudos, epíteto que se dirige ao homem atingido pela infidelidade feminina. o inverso não tem designação vernácula conhecida, talvez por força de uma cultura que o feminismo ainda não conseguiu erradicar.
além do mais, a coisa tem o seu ar démodé, pois nem sequer contempla a infidelidade gay e lésbica, que, segundo se queixam, é muito pior e mais dramática. e, já agora, tamém não trata da conhecida infidelidade humana a todos os compromissos em geral.
mas, enfim, a estonteante descoberta sueco-americana é uma forma de começar a pesquisa de tão momentoso tema.
o que assusta não é isso. a infidelidade é própria do ser humano, da sua forma forma de ser e de estar, desde o princípio dos tempos. faz parte de uma predestinação biológica que o homem tem tentado corrigir com educação, regras e leis, usos e costumes, que tornam mais humana a sociedade e permitem a tradição, a civilização e a cultura.
o que assusta neste contínuo descobrir o que todos já sabemos é a tentativa de negar a sociedade, a civilização e a cultura.
mas, afinal de contas, o que significa ser genético? significa, simplesmente, ser coisa da massa de que somos feitos. nós somos assim. mas somos mais do que isso. aspiramos à melhoria de nós mesmos. criamos tradição, usos e costumes, civilização e cultura, que fazem de nós algo mais que ratos da pradaria.
se a genética veio para explicar as nossas imperfeições, muito bem. mas vem descobrir o que já está descoberto. se veio para nos desculpar, é preciso cuidado: pode explicar por que razão matamos, roubamos e somos tão cruéis e corruptos.
mas se a genética veio para mudar o homem, a coisa fia fino: mudam-nos os genes, como quem muda os chipes? era esse o sonho alemão dos anos 30.
foram as nossas imperfeições a razão de ser de civilizações e da própria história. se nos tornarem perfeitos morrem as leis, a arte e a política. morre a humanidade, porque deixa de haver o que dizer sobre ela. e tornamo-nos robôs sem alma e sem alento.

sábado, 6 de setembro de 2008

o sistema imunitário

estamos habituados a conceber o nosso sistema imunitário como um ultrassofisticado dispositivo bélico, destinado a defender-nos de todos e quaisquer possíveis invasores. preocupamo-nos mais em descrever cada uma das células, humores, artimanhas e armadilhas de que se compõe, e cada uma das guerras e batalhas, vitórias e derrotas, e até os casos em que parece um estorvo, do que em compreender o próprio sistema imunitário e o seu significado.
antes de mais, o sistema imunitário tem uma função identitária, pelo que, se assim se pode dizer em biologia, a sua razão de ser é cultural. estabelece a diferenciação entre "eu" e "não eu" e as relações possíveis entre ser e estar no mundo.
numa metáfora antropológica, imaginemos uma tribo, uma comunidade humana, com a sua história, língua, costumes, cultura e antepassados comuns. a sua presença no meio tem como princípio elementar a preservação da identidade, simultaneamente ser e estar, sem o que a comunidade já não é "aquela tribo", "aquela comunidade", mas outra coisa ou mesmo coisa nenhuma.
confrontada com a presença do estranho, a tribo, para preservar a sua identidade, optará, conforme o caso, por combatê-lo ou aceitá-lo, integrando-o. a consequência do combate pode não ser a vitória. se derrotada, a tribo pode ser destruída fisicamente ou pode ser integrada noutra, perdendo a sua identidade.
formas intermédias são os tratados de cooperação ou complementaridade, que fazem com que comunidades estranhas decidam cada qual contribuir para sanar as carências da outra. no caso da imunidade, a possibilidade de floras estranhas habitarem o organismo e tornarem-se imprescindíveis à sobrevivência deste, como é o caso da flora intestinal. ou decidirem coabitar pacificamente, como no caso da flora da boca.
mas não só no estranho reside o problema. o inimigo pode vir de dentro. uma fação da tribo pode entrar em conflito com a tribo restante e desencadear uma luta pelo poder, que, em geral, acaba no prejuizo de toda a comunidade. no caso, o sistema imunitário entra em luta interna e o resultado são doenças auto-imunes, habitualmente graves.
finalmente, a tribo pode ser neutralizada por uma força política, administrativa e militar superior, que a obriga a aceitar a convivência forçada com tribos vizinhas ou estranhas. é o caso dos transplantes, em que o arsenal da medicina neutraliza o sistema de reconhecimento da identidade, forçando-o a aceitar órgãos estranhos.
o sistema imunitário é, pois, muito mais que um exército defensivo: é uma identidade e uma cultura, um ser e um estar no mundo da biologia.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

professores e enfermeiros

por força da sua visibilidade social, estes dois grupos profissionais foram ganhando um tique que mais nenhum grupo profissional tem: o tique do direito ao pleno emprego. mais: ainda que todos os professores e todos os enfermeiros tivessem o seu emprego garantido, ainda assim haveria, segundo eles, uma escandalosa carência de "vagas" nos respetivos ministérios.
os enfermeiros, quero dizer, os seus prestimosos sindicatos, sentem-se no direito de dizer ao Estado quantos enfermeiros são precisos. e os professores, digo, os seus sindicatos, fazem a conta espantosa de revelar como "professores desempregados" os candidatos a professores que o Estado não precisou de admitir. mas nem uns nem outros tenhem a coragem de exigir o mesmo aos empregadores privados da respetiva área.
seria cómico, se não revelasse uma inaceitável arrogância e o desprezo pelos verdadeiros desempregados: advogados, engenheiros, licenciados em letras e ciências, psicólogos, antropólogos, etc., que não têm o Estado como seu principal empregador. que quando conseguem emprego não podem ameaçar com greves nem manifes. não mostram respeito por doutorados, pós doutorados e bolseiros a quem o Estado não assegura um emprego digno, trazendo-os presos por bolsas e pela implícita ameaça de estas não lhes serem renovadas. não têm respeito por licenciados e mais que fazem trabalhos de caixa em supermercados e lojas de centros comerciais.
e, é claro, não têm qualquer respeito por todos aqueles que não sendo bacharéis, nem licenciados nem nada dessas coisas, todos os dias perdem o emprego, ou simplesmente não o ganham, no incerto e volúvel mercado do trabalho.