quarta-feira, 11 de julho de 2012

democracia amansada

vivemos um tempo de grande perturbação de espírito. vemos as coisas pequenas, insignificantes, e deixamos passar as grandes, as que realmente importam. insurgimo-nos contra uns ridículos 40 mil euros de uma deslocação ministerial oficial ao estrangeiro (que manifestamente não podem ser senão, na sua insignificância, um sinal de austeridade patética) e deixamos passar quase em claro as verdadeiras e astronómicas verbas que certos investidores, agiotas, trapaceiros e delinquentes nos deixaram para pagar em certas instituições bancárias. tomamos a nuvem por Juno, atacamos as arvorezinhas, os pequenos arbustos, e esquecemo-nos de atacar a floresta e as suas sequoias. esta mentalidade mesquinha e burra é o terreno onde medra o populismo, a maneira de governar os tansos, submetendo-os sob a aparência de os libertar.
estamos muito sensíveis aos gastos, mas não consideramos as vantagens que eles nos podem trazer. uma coisa é gastar sem retorno, outra coisa é ter mais retorno que aquilo que se gasta. outra coisa ainda é poupar e ficar cada vez mais pobre. porque nunca vi ninguém enriquecer sem investir, quer dizer, gastar.
e nesta estória das poupanças e do clima de engana-meninos em que vivemos, vem a calhar a famosa alteração do modelo autárquico, quer na quantidade de municípios quer na forma de exercer neles o poder democrático. os municípios não são o que são, nem onde são, por questões aleatórias ou sem sentido. eles são o que são por razões históricas, de povoamento, de hábitos de partilha e tomada de decisões, enfim, por coisas que o nosso mundo moderno, ou pós-moderno, como queiram, dispensava muito bem. a reorganização do mapa das freguesias e concelhos não é, porém, de agora. já houve várias ascensões e quedas de concelhos, muitas delas justificadas também por razões históricas. basta reparar na quantidade de pelourinhos (o símbolo do concelho por excelência) que pululam por aí em terras e lugares que já não têm estatatuto de concelho nem poder municipal. mas não é a redução ou alteração do mapa dos concelhos que agora me preocupa. o que me preocupa é a enormidade política e administrativa que se prepara sob o manto sagrado da poupança.
refiro-me à ideia peregrina de tornar os concelhos politicamente monocolores. quer dizer, do espetro político saído de um ato eleitoral, apenas tem relevância o partido mais votado, independentemente do tipo de mais votos ou de maioria que se trate. vai-se poupar uns tostões e o povo, apalermado pela crise, acha muito bem e a democracia vai pelo ribeiro abaixo.
a palavra "concelho" desde logo contradiz essa pretensão absurda. vem do latim concilium e significa reunião, ajuntamento, junta. reunião dos maiores, dos mais velhos, independentemente e mesmo por causa de terem opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos. é para isso que serve reunir e falar. para encontrar o melhor caminho de entre um conjunto de opiniões e propostas diferentes.  essa riqueza vale bem o investimento.



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querem agora reduzir os mandatos das autarquias sob o pretexto da poupança. vai daí, arruma-se de uma vez com o gasto em opiniões minoritárias ou mais minoritárias que a do partido mais votado. desnecessárias, por conseguinte. ficamos só com aquelas que recolherem mais votos, nem sequer é necessária a maioria. vamos então poupar um balúrdio em moedas pretas porque essas opiniões minoritárias, melhor, menos votadas, são inúteis e passamos bem sem elas. mas, ó xente, se fica só o partido que tiver mais votos, então também não precisamos dos autarcas que ele nos queira impingir. basta um. porque todos os outros têm a mesma opinião, quer dizer, são inúteis.
fica muito mais barato e democracia nem vê-la.