sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

eugenia

as preocupações “eugénicas” vêm do princípio dos tempos. vários povos utilizaram procedimentos de seleção artificial, eliminando à nascença as crianças mais fracas ou defeituosas, ou desfazendo-se dos doentes mentais, das pessoas muito doentes, dos deficientes e dos muito velhos e dependentes. entre esses povos é costume elencar os celtas, os gregos espartanos, os víquingues e os havaianos.
procedimentos comparáveis aos da eugenia humana eram já praticados na criação de animais e de plantas, pelo que não constitui surpresa que nos movimentos eugénicos participassem, ao lado dos médicos, os peritos em zootecnia e produção de sementes.
Malthus, que viria a influenciar as teorias de Charles Darwin, enunciara em 1798 o princípio de que, sem a presença de fatores que modifiquem esta relação, o crescimento populacional ocorre em progressão geométrica, enquanto que os meios de subsistência progridem numa proporção aritmética. o resultado, se não houver intervenção sobre o crescimento populacional, será a miséria e a fome. com base neste princípio, as organizações nacionais e internacionais, políticas e financeiras, começaram a intervir sobre as populações, tentando controlar a natalidade através do chamado planeamento familiar, e em alguns casos mesmo da esterilização em massa, cujo alvo eram as classes mais pobres, que se reproduzem mais do que as classes mais ricas.
assim, as preocupações oitocentistas britânicas, surgidas dos efeitos da revolução industrial, assentavam no crescente aumento populacional das classes mais pobres e na diminuição dos nascimentos nas classes mais abastadas e cultas. receava-se a degeneração biológica, e o tema enchia artigos e tratados da Medicina da época, sobretudo pela pena dos alienistas.
por “eugenia”, termo cunhado por Francis Galton em 1883, entende-se, segundo ele, o estudo dos fatores socialmente controláveis que podem melhorar ou degradar as qualidades raciais, físicas ou mentais, das gerações futuras.
depois de estudar ao pormenor 177 biografias, parte delas de sua própria família, Galton concluiu que a inteligência é predominantemente herdada e não fruto das condições do ambiente. desse modo, as classes mais ricas e mais cultas terão descendentes mais capazes e mais inteligentes do que as classes mais pobres e incultas, não por influência do meio em que são criadas, mas pela transmissão hereditária das caraterísticas favoráveis. com base nessa formulação, Galton propôs a eugenia positiva, através da realização de casamentos seletivos.
Galton era meio-primo de Charles Darwin, descendendo de matrimónios diferentes de um avô comum, Erasmus Darwin. sem dúvida, a obra “A Origem das Espécies” influenciou Galton, que, baseado na ideia de seleção natural, propôs a seleção artificial para o aperfeiçoamento da população humana.
em 1908, foi fundada em Londres a Eugenics Society, de que um dos líderes foi Leonard Darwin, oitavo dos dez filhos de Charles. depressa este tipo de sociedades proliferou na Europa e nas Américas. a Eugenics Society foi a primeira organização a defender de forma estruturada as ideias eugénicas, que se propagaram rapidamente aos Estados Unidos, onde Charles Davenport, em Cold Spring Harbor, criaria em 1909 o Eugenic Record Office, com o fim de levar a Administração Americana a promulgar leis impeditivas do nascimento de indesejáveis. o alvo eram as populações não germânicas, locais ou de proveniência imigratória, e o resultado foi a esterilização de 60 000 pessoas.
em Portugal o mais notável defensor da eugenia foi Egas Moniz. no rescaldo da II Guerra Mundial, e face à hecatombe populacional, uma tarefa, segundo ele, se impunha: “sejam quais forem os desígnios dos povos, o problema da geração humana é a grande questão do momento. todos concordam em aumentar a natalidade, mas é necessário que não se faça ao acaso. (...) os débeis, os tarados, os achacados de toda a ordem, muitos deles de origem hereditária, são pêso morto a cair sôbre a colectividade. o aumento da natalidade, bem social ou mal inevitável, tem de fazer-se à sombra da Eugenia para que a descendência seja forte e sadia, útil e feliz. os seus preceitos teem de ser seguidos com bom critério para benefício de todos” (Egas Moniz, 1945, pp. 15-16). e Egas Moniz acrescenta: “é preciso – já que assim obriga o rolar dos acontecimentos – aumentar a natalidade, mas a boa natalidade. não é fácil impedir a ligação dos sexos, mas é necessário que algumas das ligações sejam estéreis. evitar a fecundação é dos preceitos eugénicos que convém divulgar e, em muitos casos impor. diminuir o número de doenças do tipo hereditário, é aumentar o património da saúde colectiva” (Ibidem,1945, pp. 18-19).
podemos distinguir dois tipos de Eugenia: a positiva e a negativa. através da eugenia positiva pretende-se incentivar a que as pessoas saudáveis tenham mais filhos, que as qualidades de certas pessoas ou linhagens sejam perpetuadas e desenvolvidas através de uniões seletivas; com a eugenia negativa pretende-se impedir que se reproduzam pessoas com determinadas limitações, procedendo-se à eliminação de futuras gerações de doentes, pobres e raças indesejadas, através da proibição do casamento, do aborto eugénico, da esterilização compulsiva e da eutanásia. a propósito do aborto eugénico, calcula-se que sejam abortados, hoje em dia, mais de 90% das gravidezes de fetos com síndrome de Down.
além das leis sobre o aborto, que ora privilegiam o aborto com fins eugénicos ora promovem o aborto democratizado, livre e gratuito, com o fim de reduzir o número de “gravidezes indesejadas” (leia-se “gravidezes económica, social e politicamente indesejáveis”), começa hoje a entrar na ordem do dia a castração química dos chamados pedófilos e abusadores sexuais. uma e outra medida são fruto das ideias eugénicas.
os doentes mentais em geral têm sido um dos principais alvos das preocupações eugénicas. pouco ou nada se sabendo sobre a origem e mecanismo destas afeções, sabe-se, pelo menos, que reduzem ou aniquilam a produtividade, determinam absentismo e inatividade, e causam perturbações de vária ordem a familiares, vizinhos e comunidade e determinam a alocação de somas consideráveis para a sua manutenção, tratamento e reabilitação. a dificuldade que têm em organizar-se e associar-se torna-os particularmente vulneráveis e indefesos. por outro lado, a chamada “doença mental” é, antes do mais, um “regresso” ao passado pré-racionalista, constituindo uma regressão ou degeneração, pelo que se entende que nos finais do século XIX e princípios do século XX, as doenças mentais, pela pena dos alienistas, apareçam muito ligadas à ideia de degeneração. e não admira que os doentes mentais tenham estado na linha da frente do inimigo para os combates eugénicos dos Estados Unidos oitocentistas e da Alemanha hitleriana.
a primeira das questões que a eugenia suscita é a de saber quem decide, e sob que critério, quais as caraterísticas e aptidões que devem ser preservadas e desenvolvidas e quais as caraterísticas, doenças e defeitos que devem ser abolidos ou desencorajados. a opção é sempre ideológica, económica, quando não racista ou discriminatória. se tomarmos para exemplo a “perturbação bipolar”, verificamos, hoje em dia, um aumento dramático da sua visibilidade, a que não são estranhos a incessante e monótona repetição dos ritmos de trabalho, a grande competitividade e exigência dos empregos, o ritmo alucinante dos transportes de casa para o trabalho e do trabalho para casa, enfim, um ritmo de todo em todo inadequado para quem tem uma constituição biopsicológica de tipo bipolar. já numa sociedade rural a coisa sucede de outro modo, mais de acordo com os ritmos e padrões da natureza. uma depressão no inverno é uma tragédia na sociedade urbana industrial, enquanto que será um acontecimento relativamente superável numa sociedade rural, onde pouco ou nada há que fazer nos campos e se pode descansar ou mesmo permanecer longos períodos na cama sem que isso cause transtorno de maior. por sua vez, uma hipomania, ou mesmo a mania, está de acordo com o clima festivo do verão na sociedade rural, enquanto que na sociedade urbana é fonte de conflitos, de gastos desmesurados , de desinibição sexual e de uma série de inconveniências sociais.
quanto à raça, também esta foi objeto da atenção dos primeiros eugenistas, que convergiam em considerar as raças não brancas como raças inferiores, sobretudo a negra, e, dentro da raça branca, destacavam o tipo nórdico, branco, loiro e germânico, como o ideal físico e mental da humanidade futura. assim sendo, os casamentos inter-raciais eram desencorajados e em muitos casos proibidos. a evolução social e demográfica de países como o Brasil e os Estados Unidos viria ultrapassar os propósitos eugénicos: o primeiro por constituir hoje uma sociedade multirracial e mestiça por excelência; o segundo, pioneiro do racismo e das leis eugénicas, por ter hoje como presidente um produto de uma ex-indesejável ligação inter-racial negro-branca.
impõe-se, pois, uma importante pergunta: até onde podem ir os propósitos da eugenia, tendo em conta a questão de se saber para que tipo de aptidão ou caraterísticas se pretende selecionar um indivíduo, uma linhagem ou uma população, face às chamadas “necessidades”. pode dizer-se que uma inteligência "superior" ou um temperamento dominador são qualidades “indesejáveis” para um trabalhador subalterno, já que excedem as “necessidades” para a sua função. assim, qual é a verdadeira preocupação dos eugenistas, sabendo-se que uma sociedade não pode ser constituída apenas por indivíduos selecionados e excecionais? este tipo de considerações conduz-nos a Huxley e ao seu “Admirável Mundo Novo”, onde se descreve uma estratificação em cinco castas sociais e produtivas, obtidas através da transformação do Homem num OGM (organismo geneticamente modificado).
de algum modo, a eugenia procura selecionar e reproduzir, segundo as necessidades, os indivíduos das classes superiores e refrear ou impedir a proliferação dos indivíduos das classes ou castas inferiores. os seus representantes atuais são a reprodução medicamente assistida, no caso dos ricos, e o chamado planeamento familiar gratuito para atingir as classes média-baixa e baixa.
basicamente, a eugenia é um processo de discriminação, através do qual se categoriza as pessoas em aptas ou não aptas para a reprodução e define quais os produtos da reprodução humana que devem ou não sobreviver e para que fim.
um aspeto da discriminação dos indivíduos com fundamento em perspetivas e conhecimentos médicos e em pressupostos eugénicos são as restrições impostas por certos estados à entrada de “certas” pessoas e os critérios de admissibilidade das companhias de seguros, tornando claros objetivos de natureza política e económica. é claro que não faz qualquer sentido obrigar companhias seguradoras a aceitar cobrir riscos demasiado prováveis, isto é, a aceitar contratos ruinosos. mas o certo é que o seu know how adveio dos esforços dos eugenistas e geneticistas e dos conhecimentos médicos e bioquímicos.
o darwinismo social consiste na aplicação do darwinismo às teorias sociais, com base nas ideias de seleção natural, luta pela vida e sobrevivência dos mais aptos, segundo um mecanismo causal e determinista. à esquerda, a sua influência sobre o marxismo foi reconhecida pelo próprio Lénin. Charles Maurras, por seu turno, defendia, pela direita, uma sociedade ordenada e elitista, onde deveria prevalecer a seleção dos mais aptos, uma vez que, segundo afirmava, “na biologia, a igualdade só existe no cemitério”, porque “a divisão do trabalho implica a desigualdade de funções” e “o progresso é aristocrático”.
um contributo importante para as ideias eugenistas adveio tamém das posições lamarckianas e neo-lamarckianas. segundo os neolamarkianos, as condições do meio transformam-se em carateres que se transmitem hereditariamente. a pobreza, a miséria, a doença e os males sociais reproduzem-se. problemas como a criminalidade, a delinquência, a prostituição, as doenças mentais, os vícios e a pobreza são vistos como o resultado de um património hereditário que a eugenia pode regenerar.
o "atomismo" é, segundo Charles Taylor (1985), a caraterística das teorias do contrato social e outras cujo pressuposto é a visão da sociedade como "formada por indivíduos para cumprir finalidades primariamente individuais". a primazia dos direitos individuais encontra-se no centro de uma tradição segundo a qual nenhum indivíduo tem a obrigação de pertencer seja ao que for, família, igreja, partido, nação, etc., mas apenas direitos; o "contrato" é estabelecido para viabilizar a realização desses direitos, assim se adquirindo obrigações. a autonomia individual prevalece e precede, aparecendo as obrigações comunitárias a posteriori. para dar plausibilidade a essa interpretação dos direitos, o atomismo precisa de afirmar a auto-suficiência do indivíduo.
curiosamente, se é certo que a eugenia tem por escopo a produção de uma sociedade de indivíduos selecionados, tendo em conta determinado tipo de caraterísticas ou aptidões, quer produzindo artificialmente os “melhores” quer eliminando os “piores”, o certo é que o faz, ou fará, à custa dos interesses e da dignidade individuais.