quinta-feira, 24 de março de 2011

algumas reflexões sobre o simbolismo das pontes

a ponte é um dos símbolos mais difundidos no mundo. ela é a passagem da terra ao céu, do estado humano aos supra-humanos, da contingência à imortalidade, do mundo sensível ao supra-sensível. é um símbolo de passagem, uma passagem perigosa como toda a viagem iniciática. a ponte representa o que é representável também pela barca do inferno. assim, em algumas tradições fala-se da travessia da ponte que leva ao paraíso passando por cima do inferno. é uma ponte “mais fina que um cabelo e mais cortante que um sabre”, a ponte da espada, das tradições celtas. só os eleitos a atravessarão, com mais ou menos dificuldade, de acordo com a qualidade das ações que praticaram e a força da sua fé. alguns farão a travessia em cem anos, outros em mil, consoante a pureza das suas vidas. mas os que não tem merecimento serão precipitados no abismo.

segundo a mitologia celta, um rei deitou-se atravessado no rio, de uma margem à outra, para que o exército pudesse passar por cima do seu corpo. porque, diz o aforismo, “aquele que é chefe que seja ponte”. este mito foi conservado aqui, na velha Galécia, na lenda da travessia do rio Lima pelo conquistador romano, o general Décimo Júnio Bruto, “O Galaico”. o nome do rio, “límia” na fala autóctone, era para os romanos percebido como o “limite”, algo que não podia ser transposto sem graves perigos. tal como na lenda grega do rio Letes, quem o atravessasse perderia a memória. perante a recusa dos soldados em transpor o rio, receosos de perderem a memória da sua vida, do seu passado e a sua identidade, Décimo Júnio Bruto passa para o lado de lá e chama pelo nome os seus soldados, um por um – provando, assim, que não só não tinha perdido a memória nem a identidade pessoal como subia de grau na afirmação da sua liderança.

todas as tradições, ocidentais e orientais, confirmam o simbolismo da ponte como lugar de passagem e de prova. um lugar mais propriamente de entrada do que de saída, já que a própria ponte é um universo simbólico em si mesmo, do qual se sai depois de superadas as provas que implica. aquele que entra não é o mesmo que sai, porque sai mudado, novo. por isso mesmo se diz “Ponte das Três Entradas” e não “ponte das três saídas”. a ponte representa a transição de um estado interior para outro, a saída entre dois desejos em conflito. é um passo decisivo. evitar a passagem não resolve nada, há que atravessá-la, com a liberdade de pensar que toda a superação implica. sem essa liberdade de pensar é impossível transpor a ponte que conduz da escravidão à liberdade, desta Babilónia terrestre onde somos estrangeiros à Jerusalém celeste de que aspiramos a ser cidadãos perfeitos.

na ponte há duas dimensões: a horizontal e a vertical. funciona como um “eixo do mundo”. a ponte de Chaves é um bom exemplo desse eixo do mundo: tem uma coluna onde consta o nome de todas as tribos galaicas por ela servidas e que para ela contribuíram com o trabalho dos seus filhos. ou seja, o mundo de que ela é o centro. esta dimensão vertical é reconhecida por todas as tradições antigas. a ponte une não só as duas margens do rio ou do abismo, mas também o céu e a terra. por isso, muitas pontes medievais, sobretudo românicas, tem um perfil em lombo de asno, de duplo pendente, formando um ângulo no seu arco médio. este desenho é propositado, pois que essa estrutura não só não é necessária, tendo em conta o caudal do rio que cruza, como ainda acrescenta problemas arquitetónicos “desnecessários” e complexos. a sua justificação não é, pois, de natureza prática, mas sim espiritual. se repararmos, também as pontes modernas investem muito na dimensão vertical, a dizer que, apesar de tudo, os mestres construtores continuam vivos.

em França, na Espanha e em Portugal são conhecidas as “pontes do diabo” e as suas lendas. são pontes construídas em lugares de extrema dificuldade, por cima de abismos aparentemente inacessíveis e intransponíveis, como a nossa ponte da Misarela. essas lendas põem em confronto os poderes de deus e do diabo e os seus respetivos seguidores. o diabo, o demiurgo, aquele que faz a partir da matéria pré-existente, o único capaz de erguer semelhantes estruturas no entendimento popular, exige o seu quinhão: o sacrifício do primeiro que a atravessar. estas lendas tentam explicar não só a própria construção dessas pontes materiais aparentemente impossíveis, como do ponto de vista simbólico indicam a angústia que suscita a passagem difícil sobre um lugar perigoso. a ponte coloca o homem numa via estreita, perante a qual ele se defronta com a obrigação de escolher. escolha que o pode perder mas também salvar. escolha que implica liberdade de pensar, disponibilidade para correr riscos.

do ponto de vista da psicologia, o simbolismo da ponte traduz a ligação do consciente ao inconsciente, as provas que cada um de nós tem que superar no processo de individuação e de autodesenvolvimento. a ponte não é um mero lugar de travessia, pois deve ser abordada através de ritos de passagem bem determinados. por isso, muitas pontes medievais são precedidas de capelas ou nichos, de alminhas, de uma torre, de uma porta ou de advertências que remetem a passagem física para o mundo do sagrado. muitas, ainda, sem que nada de prático o justifique, estão construídas em escada, tornando a passagem deliberadamente mais difícil e lenta, convidando à reflexão.

os imperadores romanos tinham o título de Sumo Pontífice, título que, a partir do século IV, passou a ser o dos papas. “Sumo Pontífice”, isto é, “o mais alto dos construtores de pontes”, aquele que liga este mundo e os outros, aquele que tem, pois, a mais alta função religiosa (de “re-ligar”).

hoje em dia, o aspeto utilitário da ponte dificulta o reconhecimento do seu caráter simbólico e sagrado. além disso, ela é um símbolo de construtores e, por isso, a sua elaboração mental e filosófica é de caráter esotérico, estando vedada aos que não tem qualificação para isso. as próprias pontes modernas, apesar do materialismo reinante, tenhem uma forte componente artística que vai para muito para além da sua estrita função utilitária.

quando só o aspeto utilitário permanece e se perde o seu simbolismo, a ponte torna-se um mero objeto, sem outro sentido nem função que a da própria estrada de que faz parte. deixa de merecer atenção, meditação e reverência. é simplesmente usada. mas ela conserva o seu duplo aspeto: benéfico e maléfico. por má construção ou por desleixo, pode cair fragorosamente, levando consigo as suas vítimas, os seus sacrificados.

pois bem: há as pontes-símbolo, que em si contêm verdades e saberes. há as pontes que por falta de simbolismo são símbolo de um mundo sem símbolos - um mundo onde sobejam as pontes aquáticas, terrestres e aéreas. mas há também as outras pontes. vivemos até num mundo onde essas pontes faltam: as pontes da fraternidade e do amor. as pontes que é urgente construir entre nós e nós, e entre nós e os outros. sob pena de vivermos entre abismos.



figura: ponte da Misarela.
in: www.serra-do-geres.com