sábado, 29 de dezembro de 2007

A Caixa do Kosovo

podia pôr-lhe o título de A Caixa de Pandora, mas como ela já foi aberta há uns anos, quando começou o colapso da Jugoslávia, boto-lhe apenas o título do compartimento do fundo: o Kosovo.
não sei por que artes, europeus e norte-americanos deram em pensar que o melhor para a Jugoslávia era parti-la em tantos bocados quantas as etnias, dialectos, línguas e religiões. até pode ser que esteja certo. afinal, o mais elementar direito de qualquer povo é agrupar-se em torno da sua identidade. é da afirmação da identidade própria e da auto-satisfação de ser livre e auto-governado que pode surgir o sentimento de solidariedade entre todos os povos, livres e iguais.
mas tem um porém: o exemplo da Jugoslávia, e o fundo do baú que é o Kosovo, não vai ficar contido nos Balcãs. a partir de agora vira-se uma página capitular da História dos Estados multi-étnicos, plurilinguísticos e multi-religiosos. não pode haver dois pesos e duas medidas. o que vale para os Balcãs vale para a Grã-Bretanha, para a França. para a Península Ibérica, para a Roménia, para a Bélgica, para o Canadá, para o Paquistão, enfim, uma bola de neve das antigas.
o Kosovo não tem mais direito à independência que o Euskadi, a Catalunha, a Galiza, a Escócia, o Quebeque, e assim por diante. o UÇK-Ushtria Çlirimtare e Kosovës do Kosovo* não pode passar de terrorista a patriota sem que o mesmo aconteça à ETA-Euskadi Ta Askatasuna de Euskadi, como já aconteceu ao Óglaigh na hÉireann ou IRA-Irish Republican Army da Irlanda do Norte.
mas a Caixa do Kosovo não se fecha aqui. sabemos que o fim último das movimentações independentistas do Kosovo é a reunião da família albanesa. como o fim último das movimentações no Ulster é a reunião da família irlandesa. segue-se a reunião da família Basca, da família Catalã, da família Húngara, da família Romena, da família Neerlandesa e da família Galego-Portuguesa?
seja como for, uma coisa salta à vista: afinal, os estados europeus não são feitos de mais consistência interna que qualquer dos estados africanos. são meros caprichos da História que, tal como o mito de Chronos, engendra e devora os seus próprios filhos.

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*declarado em 1998 como organização terrorista pelos EUA.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

o consumo de drogas nas prisões

uma alta figura do IDT veio a terreiro admitir que nas nossas prisões é um vale-tudo: as famílias dos presos levam droga, a droga circula lá dentro com o maior dos à-vontades, todo o mundo trafica, todo o mundo é cúmplice, enfim, uma negociata das antigas. logo - esclarece -, o que há a fazer é instituir "salas de chuto". nem uma palavra sobre o que fazer para pôr termo à situação dentro das nossas cadeias, sei lá, reformular o sistema de penas, reformar as nossas prisões, rever as cadeias hierárquicas, investigar a atividade dos guardas prisionais, tornar a vida mais difícil a quem trafica. nada disso. o remédio é, apenas, baixar os braços e criar "salas de injeção assistida", vulgo "salas de chuto".
pois muito bem: se estivesse em marcha uma reforma profunda do nosso sistema penal e prisional, se estivesse pensada uma nova hierarquia dentro das cadeias, se estivesse em curso uma devassa sobre o sistema de cumplicidades que vive da droga e de outras necessidades dos reclusos, eu admitiria que, ao mesmo tempo, se instituisse "salas de chuto", como forma de minimizar riscos e reduzir danos nos toxicodependentes reclusos.
mas só isso e não fazer mais nada, sou contra. é uma hipocrisia parasita, uma mera colaboração do Estado num status quo que ele mesmo tem por incumbência combater.
afinal, as prisões são instituições criadas para redimir pessoas que violaram as leis, ou são instituições onde se viola a lei à grande e à francesa e se enriquece do dia para a noite num sistema fechado de economias paralelas?
começo a perceber tanta determinação da parte do Estado na luta antitabágica. o tabaco não enriquece ninguém. a luta contra o fumo dá nas vistas e faz muito barulho. sempre parece que se faz alguma coisa. os tontos são fáceis de enganar com todo o aparato das leis contra o tabaco. entretanto, onde é necessário que se faça alguma coisa, o Estado está derrotado, de cócoras.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

o aerotorto

vai em dez anos, mais coisa menos coisa, que se fala da construção do novo aeroporto de Lisboa. numa casa séria, já a ordem de o fazer tinha sido dada, já os aviões aterravam, já a gente sabia o caminho para lá, enfim, já o novo aeroporto era quase velho. aqui não. o novo aeroporto nem sequer é novo ainda. nem sequer se sabe onde vai ser. opina o pai e a mãe e o tio e o padre e a sopeira, e o afilhado do padre e o filho da sopeira, e enquanto toda a gente competente opina e enquanto opina a gente in-competente, o novo aeroporto continua novo, novissimo, ou seja, por fazer. é coisa única, nossa, portuguesa de gema. eu achava até que o problema é a falta de dinheiro. porque enquanto 9 milhões e meio de portugueses opinam sobre o novo aeroporto, não gastamos um tostão a construí-lo. já tinha visto esse filme em qualquer lado... nã, mas não me comem as papas na cabeça. não é só isso que está em causa.
é que, eis senão quando, o aeroporto aterra onde o diabo não se lembraria de pensar. a população portuguesa, na sua grande maioria de dois terços ou mais, reside a norte do Tejo. logo, manda a lógica mais pura, faz-se o aeroporto a sul do Tejo. nós, os galegos, precisamos é de viajar, de gastar pneus e gasolina, de pagar portagens, de contribuir com os nossos passeios forçados para o povoamento do Alentejo e arredores. o nosso aeroporto, o aeroporto dos portugueses propriamente ditos é o aeroporto do Porto. chega muito bem.
outro aeroporto a norte de Lisboa seria uma aberração, a perpetuação irresponsável de uma lógica demográfica com milénios de história. a sul do Tejo é que está bem. que até já lá tem o aeroporto do Algarve.
e dizem que fica mais barato. que é mais fácil de fazer, que dá menos trabalho. e quem achar que fica longe e por caminho torto que se mude ou vá de carro ou de avião. pois claro. estou nessa.
e, já agora, por que não fazem o novo aeroporto de Lisboa em Porto Santo? é uma ilha pequena, plana, onde cabe na perfeição um grande aeroporto e pêras. não está perto de nada, nem longe que não se vá numa hora de avião. fica mais barato ainda, não implica a construção de pontes nem acessos, e permite a ida à praia entre dois voos de escala. tem um clima constante, não fica muito mais longe da população portuguesa que mora a norte do Tejo, nem favorece escandalosamente a grande indústria e os grandes exportadores da Península de Setúbal.
que é que querem? toda a gente em Portugal pode dizer o que lhe vem à cabeça sobre o novo aeroporto. por que não haveria eu de poder também?

ps: estou com aqueles que defendem a manutenção e alargamento do Aeroporto da Portela. de uma assentada, resolvia-se dois enormes problemas: botava-se Lisboa abaixo e ficávamos com um aeroporto em condições.

o crepúsculo da Medicina

entende o senhor ministro da saúde que aos médicos não assiste o direito de consciência, tendo em conta o primado das volúveis leis da República. por mim, continuo aferrado ao Juramento de Hipócrates e aos fundamentos da profissão médica. entendo que lei nenhuma da República tem mais força que as minhas convicções morais, éticas, filosóficas e culturais, e muito menos que as motivações que me levaram para esta profissão. se for lei da República a aplicação da pena de morte, senhor ministro da Justiça, senhor ministro da Saúde, não contem comigo. se for lei da República a aplicação da pena de mutilação, da mão, do pé, do braço, dos coisos, do que seja, senhor ministro da Justiça, senhor ministro da Saúde, não contem comigo.
há sempre alguém disposto a cumprir as leis da República. sirvam-se desses.
também é lei da República haver exército, marinha e aviação, instrumentos de uma possível guerra. há os que querem fazer parte e os que se esquivam em nome da objeção de consciência. e está certo. não pode a República violentar a consciência do cidadão. mas esses, já agora não sei porquê, continuam a poder objetar. há sempre alguém disposto e vosselências servem-se.
mas nós, médicos, não temos, no entender de vossa excelência, o direito à repugnância perante certas leis da República. não podemos esquivar-nos a praticar atos que, de acordo com a nossa consciência, são imorais, anti-éticos e anti-profissionais, porque a lei é da República, ponto final e acabou.
pode até acontecer que vossa excelência venha a fazer vencimento na sua pretensão. já não digo nada. já nada me espanta num mundo em que a capacidade de espantar morreu.
mas então deixe de falar de médicos e de medicina. chame-nos mecânicos, robôs, sei lá, uma coisa técnica ou assim. mas médicos é que não.
ou seja, se vossa excelência levar a sua avante, nós estaremos aqui para fazer a vontade do freguês, para consertar, reparar, mexer, mudar, pôr e tirar, remendar, reabilitar ou botar ao lixo. mas não para tratar, para cuidar, para exercer medicina. e já agora, senhor ministro, tire-nos a cultura, a moral, o saber e a consciência. vossa excelência manda, a gente faz. não precisaremos de mais nada que da nossa técnica e das ordens de vossa excelência.
aonde isto chegou, senhor ministro!
quer um aborto, uma eutanásia, uma amputação legal, uma execução assistida? OK, senhor ministro. os mecânicos estão prontos. os médicos-médicos é que não estão.

ps: afinal, de que falam os nossos ministros da saúde quando enchem a boca de ética dos médicos, a torto e a direito?

sábado, 1 de dezembro de 2007

vih, sida e mentiras: assim não vale

nem de propósito: vai realizar-se um almoço de protesto contra o despedimento do senhor cozinheiro seropositivo. uma associação, Médicos pela Escolha (de quê?), organiza uma patuscada preparada por pessoas seropositivas. e o senhor Coordenador para a Infecção VIH/sida presta-se ao frete e ao embuste de estar presente.
vamos a ver se nos entendemos. ser apenas seropositivo é diferente de ser seropositivo com sintomas não-sida e mais diferente ainda de ser seropositivo doente na fase sida. confundir tudo isto é contribuir para a perpetuação dos números que nos envergonham.
façam as jantaradas e patuscadas que entenderem os Médicos pela Escolha (de quê?) e os seus seropositivos de estimação, que não vai daí grande mal ao mundo. a seropositividade não se pega assim.
não podem é a estar a vender-nos seropositivos por doentes com sida. aqui a coisa fia fino. é outra realidade. é estar doente, é ser incapaz para o trabalho, é contrair infecções difíceis de tratar e fáceis de propagar, é, enfim, uma razão mais do que suficiente para que nenhum cozinheiro nessas condições possa estar ao serviço.
façam, antes, o jantar que eu propus: no cujo Hotel e preparado pelo cozinheiro doente despedido.
isso é que era ser corajoso, solidário e consequente. se houvesse tomates que chegassem. para a refeição, já se vê.