domingo, 25 de novembro de 2012

sobre o Natal


festa quase tão antiga como a humanidade, pelo menos desde que há populações dedicadas à agricultura, o natal é uma celebração do sol no solstício de inverno, no dia a partir do qual os dias começam a crescer, como se o sol nascesse de novo todos os anos. os romanos, que impuseram a sua língua a todo o império, chamavam-lhe o "natalis solis invictus", ou "o nascimento do sol invencível" - de onde tirámos o nome da festa: Natal. a religião mitraica, de origem persa, seguida por muitos soldados romanos, celebrava neste dia o nascimento de Mitra, nascido numa gruta, numa manjedoura, aquecido pelo bafo do touro e do burrinho, símbolos da luz e das trevas respetivamente. a tradição chegou até hoje, com os aportes de outras culturas, inclusive a do cristianismo. o nascimento de Jesus, como dia de natal também cristão, é estabelecido pelo imperador Constantino o Grande, que antes de se converter à nova religião era adepto do mitraismo. por conseguinte, o "natalis solis invictus" deixa de invocar o sol antigo e passa a celebrar o novo "sol": Jesus.  no antigo calendário juliano a festa de natal calhava a 6 de janeiro, data ainda seguida pelos ramos orientais do cristianismo e na península ibérica. na minha infância, no norte, o dia 6 de janeiro, chamado dia de Reis, ainda era festejado como uma espécie de natal mais pequenino, com distribuição de prendas menos vistosas que no Natal de 25 de dezembro. porém, o Natal, mais que um dia, é uma quadra, um tempo que se prolonga por quase trinta dias, resultantes da associação dos referentes solares aos referentes lunares. e é assim que na minha terra se dizia "até ao São Sebastião é Natal", quer dizer, até 19 de janeiro. um ciclo lunar completo. e aqui bem pertinho de Coimbra ainda hoje fazem fogueiras no "São Sebastião", fogueiras que são vestígios das velhas festas solares dos solstícios de inverno ("natal") e de verão ("santos populares"). 
com a reforma do calendário que perdura até aos nossos dias, o papa Gregório XIII  estabeleceu a data de 25 de dezembro como dia de Natal. mas o dia é o mesmo, o calendário é que mudou.
em todo o lado por onde o semearam, o cristianismo avançou sobre os rituais pagãos, anexando-os, incorporando-os, dando-lhe um verniz novo. e tem sobrevivido à custa dessa ligação mutuamente satisfatória. 





mas no século XXI, um papa alemão, talvez influenciado pela reforma protestante luterana, decide que na gruta e no presépio não havia touro nem burro e os pastores não cantavam. e que a estrela de Belém era uma supernova. quis livrar-se dos vestígios pagãos de uma festa pagã desde o início. pode ter matado o touro e o burro, pode ter calado os pastores. mas deu um tiro no Natal cristão.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

o touro e o burro


temos o Natal à porta. aquele tempo em que o sol se lembrou de re-nascer precisamente no mesmo dia em que se diz que Jesus nasceu: o solstício de inverno. aquele tempo mágico, repleto de des-razões e emoções, de maravilhas e inconsistências, de pastores que saem das inverneiras a caminho das brandas, em sentido contrário às estações. de ovelhas que pastam onde devia estar a neve. aquele tempo do boi solar e do burro da escuridão. aquele tempo de Mitra. aquele tempo dos presentes, dos Reis Magos, das chaminés, do alegre pinheiro, do Pai Natal e das renas. aquele tempo coreografado por Francisco de Assis na representação do presépio. 
não sei que raio deu ao Dr. Ratzinger, teólogo das coisas, papa Bento XVI. diz que o touro e o burro nunca estiveram lá. é claro que não. nem o burro, nem o touro, nem o resto. mas era escusado destruir a magia da coisa.


e quem deu o tiro no próprio pé que faça o curativo.



terça-feira, 6 de novembro de 2012

o homenzinho muito inho

havia um homenzinho muito inho que chefiava uma espelunca. quando ele chegou à espelunca não havia mais ninguém que a pudesse chefiar, pelo que o homenzinho muito inho ficou chefe, assim sem mais nem menos. naquela espelunca fazia-se todo o género de falcatruas, porque era uma espelunca oficial, e nas espeluncas oficiais era mais fácil fazer falcatruas. quando havia obras ou aquisições na espelunca, fazia-se um concurso, nomeava-se sempre os mesmos júris e ganhavam sempre os mesmos concorrentes. de jeito que algumas telhas, mosaicos, madeiras, ferros, vidros, fios elétricos, argamassas e tijolos iam parar, misteriosamente, às casas dos membros dos júris. toda a gente sabia disso e falava do assunto à boca pequena, mas se lhes perguntavam diretamente alguma coisa aí já não sabiam de nada, que é por causa. e a coisa continuava e até dava jeito a muita gente.
o homenzinho muito inho era um ditador, rancoroso e vingativo, mas não era por mal. hoje dava uma ordem, amanhã dava a contrária e todos tinham que obedecer cegamente, como se toda a ordem e o seu contrário fizessem o mesmo sentido. e se alguém lhe apontasse algum defeito ou assim, quer dizer, se alguém o criticasse, o homenzinho muito inho esperava pacientemente a hora em que pudesse atacar. nunca atacava de frente, porque era demasiado pequeno para atacar de frente. mas assim que tivesse uma pentelhice legal, uma deconhecida ou insignificante formalidade burocrática por onde atacar, atacava. escrevia ou mandava escrever cartas anónimas ao ministro das espeluncas, que logo instaurava o respetivo processo com toda a pompa e circunstância próprias de um ministro das espeluncas.


o homenzinho muito inho sofria de uma coisa a que chamava enxaquecas. sempre que tinha de tomar parte numa reunião do ministério, de uma direção-geral ou de um conselho regional ou local do ministério das espeluncas, tinha um ataque de enxaqueca, de jeito que nunca ninguém soube ao certo o que o homenzinho muito inho pensava a respeito fosse do que fosse, porque as enxaquecas o impediam de exprimir um pensamento, mesmo muito pequeno.
o homenzinho muito inho era sempre um grande entusiasta do partido que estivesse no governo, mas só até que os meteorologistas da política indicassem que ia haver mudança de ventos. aí punha-se a jeito para agarrar os novos ventos e estava sempre do lado do partido que interessava.
um dia, o homenzinho muito inho desapareceu, por força da idade ou assim. nunca mais ninguém ouviu falar nele. e nem os membros dos júris dos concursos de obras e aquisições que se faziam na espelunca quiseram saber se estava muito vivo ou muito morto.
era um bom homem.



sábado, 3 de novembro de 2012

ai aguentou, aguentou...


o moleiro tinha um burro. e meteu-se-lhe em cabeça ao moleiro que o burro comia demais para o que trabalhava. embora o burro, coitado, não comesse mais, nem sequer tanto, que os burros da concorrência. vai daí, o moleiro achou, na sua sabed
oria de algibeira, que melhor seria cortar na ração do burro, pois que cortando na ração do burro, teria maior lucro. e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou...então o moleiro achou ainda melhor obrigar o burro a trabalhar dias seguidos, sem domingos nem feriados e mais horas por dia. e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou...
aí o moleiro achou melhor insistir na dose e cortou de novo na ração do burro. aí o burro começou a definhar, a emagrecer, de uma elegância nunca vista. e o moleiro rejubilou: "bem vistas as coisas, o meu burro sofria de obesidade, agora que está mais magrinho até vai viver mais tempo. isto não podia correr melhor...". 
e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou.
até que certo dia, de manhã, quando foi buscar o burro pro trabalho, o burro nem concordou nem discordou. estava simplesmente ali, absorto, de olhos perdidos no infinito. o moleiro, para castigo, cortou-lhe um pouco mais ainda na ração.
e desta vez o burro já não aguentou. e o moleiro, sem burro e sem explicação para tão estranho fenómeno, morreu de fome e de burrice.