domingo, 25 de novembro de 2012

sobre o Natal


festa quase tão antiga como a humanidade, pelo menos desde que há populações dedicadas à agricultura, o natal é uma celebração do sol no solstício de inverno, no dia a partir do qual os dias começam a crescer, como se o sol nascesse de novo todos os anos. os romanos, que impuseram a sua língua a todo o império, chamavam-lhe o "natalis solis invictus", ou "o nascimento do sol invencível" - de onde tirámos o nome da festa: Natal. a religião mitraica, de origem persa, seguida por muitos soldados romanos, celebrava neste dia o nascimento de Mitra, nascido numa gruta, numa manjedoura, aquecido pelo bafo do touro e do burrinho, símbolos da luz e das trevas respetivamente. a tradição chegou até hoje, com os aportes de outras culturas, inclusive a do cristianismo. o nascimento de Jesus, como dia de natal também cristão, é estabelecido pelo imperador Constantino o Grande, que antes de se converter à nova religião era adepto do mitraismo. por conseguinte, o "natalis solis invictus" deixa de invocar o sol antigo e passa a celebrar o novo "sol": Jesus.  no antigo calendário juliano a festa de natal calhava a 6 de janeiro, data ainda seguida pelos ramos orientais do cristianismo e na península ibérica. na minha infância, no norte, o dia 6 de janeiro, chamado dia de Reis, ainda era festejado como uma espécie de natal mais pequenino, com distribuição de prendas menos vistosas que no Natal de 25 de dezembro. porém, o Natal, mais que um dia, é uma quadra, um tempo que se prolonga por quase trinta dias, resultantes da associação dos referentes solares aos referentes lunares. e é assim que na minha terra se dizia "até ao São Sebastião é Natal", quer dizer, até 19 de janeiro. um ciclo lunar completo. e aqui bem pertinho de Coimbra ainda hoje fazem fogueiras no "São Sebastião", fogueiras que são vestígios das velhas festas solares dos solstícios de inverno ("natal") e de verão ("santos populares"). 
com a reforma do calendário que perdura até aos nossos dias, o papa Gregório XIII  estabeleceu a data de 25 de dezembro como dia de Natal. mas o dia é o mesmo, o calendário é que mudou.
em todo o lado por onde o semearam, o cristianismo avançou sobre os rituais pagãos, anexando-os, incorporando-os, dando-lhe um verniz novo. e tem sobrevivido à custa dessa ligação mutuamente satisfatória. 





mas no século XXI, um papa alemão, talvez influenciado pela reforma protestante luterana, decide que na gruta e no presépio não havia touro nem burro e os pastores não cantavam. e que a estrela de Belém era uma supernova. quis livrar-se dos vestígios pagãos de uma festa pagã desde o início. pode ter matado o touro e o burro, pode ter calado os pastores. mas deu um tiro no Natal cristão.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

o touro e o burro


temos o Natal à porta. aquele tempo em que o sol se lembrou de re-nascer precisamente no mesmo dia em que se diz que Jesus nasceu: o solstício de inverno. aquele tempo mágico, repleto de des-razões e emoções, de maravilhas e inconsistências, de pastores que saem das inverneiras a caminho das brandas, em sentido contrário às estações. de ovelhas que pastam onde devia estar a neve. aquele tempo do boi solar e do burro da escuridão. aquele tempo de Mitra. aquele tempo dos presentes, dos Reis Magos, das chaminés, do alegre pinheiro, do Pai Natal e das renas. aquele tempo coreografado por Francisco de Assis na representação do presépio. 
não sei que raio deu ao Dr. Ratzinger, teólogo das coisas, papa Bento XVI. diz que o touro e o burro nunca estiveram lá. é claro que não. nem o burro, nem o touro, nem o resto. mas era escusado destruir a magia da coisa.


e quem deu o tiro no próprio pé que faça o curativo.



terça-feira, 6 de novembro de 2012

o homenzinho muito inho

havia um homenzinho muito inho que chefiava uma espelunca. quando ele chegou à espelunca não havia mais ninguém que a pudesse chefiar, pelo que o homenzinho muito inho ficou chefe, assim sem mais nem menos. naquela espelunca fazia-se todo o género de falcatruas, porque era uma espelunca oficial, e nas espeluncas oficiais era mais fácil fazer falcatruas. quando havia obras ou aquisições na espelunca, fazia-se um concurso, nomeava-se sempre os mesmos júris e ganhavam sempre os mesmos concorrentes. de jeito que algumas telhas, mosaicos, madeiras, ferros, vidros, fios elétricos, argamassas e tijolos iam parar, misteriosamente, às casas dos membros dos júris. toda a gente sabia disso e falava do assunto à boca pequena, mas se lhes perguntavam diretamente alguma coisa aí já não sabiam de nada, que é por causa. e a coisa continuava e até dava jeito a muita gente.
o homenzinho muito inho era um ditador, rancoroso e vingativo, mas não era por mal. hoje dava uma ordem, amanhã dava a contrária e todos tinham que obedecer cegamente, como se toda a ordem e o seu contrário fizessem o mesmo sentido. e se alguém lhe apontasse algum defeito ou assim, quer dizer, se alguém o criticasse, o homenzinho muito inho esperava pacientemente a hora em que pudesse atacar. nunca atacava de frente, porque era demasiado pequeno para atacar de frente. mas assim que tivesse uma pentelhice legal, uma deconhecida ou insignificante formalidade burocrática por onde atacar, atacava. escrevia ou mandava escrever cartas anónimas ao ministro das espeluncas, que logo instaurava o respetivo processo com toda a pompa e circunstância próprias de um ministro das espeluncas.


o homenzinho muito inho sofria de uma coisa a que chamava enxaquecas. sempre que tinha de tomar parte numa reunião do ministério, de uma direção-geral ou de um conselho regional ou local do ministério das espeluncas, tinha um ataque de enxaqueca, de jeito que nunca ninguém soube ao certo o que o homenzinho muito inho pensava a respeito fosse do que fosse, porque as enxaquecas o impediam de exprimir um pensamento, mesmo muito pequeno.
o homenzinho muito inho era sempre um grande entusiasta do partido que estivesse no governo, mas só até que os meteorologistas da política indicassem que ia haver mudança de ventos. aí punha-se a jeito para agarrar os novos ventos e estava sempre do lado do partido que interessava.
um dia, o homenzinho muito inho desapareceu, por força da idade ou assim. nunca mais ninguém ouviu falar nele. e nem os membros dos júris dos concursos de obras e aquisições que se faziam na espelunca quiseram saber se estava muito vivo ou muito morto.
era um bom homem.



sábado, 3 de novembro de 2012

ai aguentou, aguentou...


o moleiro tinha um burro. e meteu-se-lhe em cabeça ao moleiro que o burro comia demais para o que trabalhava. embora o burro, coitado, não comesse mais, nem sequer tanto, que os burros da concorrência. vai daí, o moleiro achou, na sua sabed
oria de algibeira, que melhor seria cortar na ração do burro, pois que cortando na ração do burro, teria maior lucro. e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou...então o moleiro achou ainda melhor obrigar o burro a trabalhar dias seguidos, sem domingos nem feriados e mais horas por dia. e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou...
aí o moleiro achou melhor insistir na dose e cortou de novo na ração do burro. aí o burro começou a definhar, a emagrecer, de uma elegância nunca vista. e o moleiro rejubilou: "bem vistas as coisas, o meu burro sofria de obesidade, agora que está mais magrinho até vai viver mais tempo. isto não podia correr melhor...". 
e o burro aguentou? ai aguentou, aguentou.
até que certo dia, de manhã, quando foi buscar o burro pro trabalho, o burro nem concordou nem discordou. estava simplesmente ali, absorto, de olhos perdidos no infinito. o moleiro, para castigo, cortou-lhe um pouco mais ainda na ração.
e desta vez o burro já não aguentou. e o moleiro, sem burro e sem explicação para tão estranho fenómeno, morreu de fome e de burrice.


domingo, 30 de setembro de 2012

nem sempre o caminho é sempre em frente


quando se construiu a autoestrada A1, havia troços por acabar. a interrupção da estrada e as vias alternativas estavam bem sinalizadas, acompanhadas dos respetivos sinais de trânsito proibido na autoestrada e indicação do caminho de desvio.
acontece que há sempre quem se ache mais inteligente e mais iluminado que os outros e não queira saber de avisos, de sinais, nem mesmo de barreiras a marcar o caminho proibido. 

numa dessas interrupções de autoestrada, motivada pela construção de um viaduto, um condutor e seus acompanhantes decidiram ignorar avisos, sinais e barreiras e seguir em frente. resultado: o viaduto ainda não estava concluido e o carro, seu condutor e ocupantes cairam no fosso. ninguém sobreviveu. 


à atenção de quem se acha mais inteligente que os outros e julga que só existe um caminho: em frente. às vezes esse caminho é o único que não existe.


sábado, 22 de setembro de 2012

a empregada, a união de facto e a justiça portuguesa

o velho tinha uma empregada, que lhe fazia a cama, as compras, a comida e as limpezas. e a coisa corria bem. certo dia, o velho adoeceu e a empregada, solícita, comunicou o facto à família dele, que vivia muito longe, do outro lado do mar. que ele era da família, logo, estava certa, cuidariam bem dele e essas coisas. o velho foi internado, e como exigia cuidados de mais que uma pessoa, assim que teve alta do hospital, a família providenciou-lhe um lar de excelente recorte e qualidade. entretanto, a empregada foi fazendo da casa do velho casa sua. instada a abandoná-la de livre vontade, a empregada respondia que estava em casa dela, pois que vivia em união de facto com o velho. entretanto, a idade, a doença e o destino fizeram o que acharam por bem fazer e a casa continuava ocupada pela empregada do velho.
foi preciso recorrer à justiça. o caso arrastou-se quase uma década e, finalmente, a decisão surgiu: não havia quaisquer indícios ou provas de união de facto e a empregada teria que devolver a casa aos herdeiros habilitados, entre tudo o mais, por testamento explícito. foi dado à mulher um prazo de dois anos para devolver a casa à família. os anos passaram.
e quando a família se preparava para tomar posse do que era seu, uma nova condição surgiu: era preciso mover uma ação de execução da sentença judicial. está certo. viva a justiça.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

bom para a tosse

há doentes que me aparecem carregadinhos de medicamentos, tantos, tantos, que quase não há horas no dia que cheguem para os tomar. não, não é "apenas" excesso de zelo médico, é muitas vezes o gosto ou a necessidade de recorrer a médico atrás de médico e essa coisa muito portuguesa de juntar a medicação do último médico às medicações dos médicos precedentes. de jeito que, às vezes, depois de um cuidadoso inquérito a tudo o que realmente o doente toma, é preciso suspender uma série de medicações inúteis, porque repetidas, ou prejudiciais no meio de tanta interação farmacológica. não é tarefa fácil. à uma, porque o mais certo é que o paciente vá juntar a minha prescrição à prescrição dos colegas que me precederam; à outra, porque o doente se pode sentir desamparado pela suspensão de medicamentos que tinha por essenciais ao seu bem-estar e à sua permanência no mundo dos vivos.
de jeito que às vezes me dá vontade de brincar, de me impor pelo absurdo. pego numa caixa de comprimidos e noutra e noutra, e digo ao paciente : " - olhe, estes remédios são muito bons para a tosse..."
é costume olharem para mim com ar surpreso e confuso:
" - para a tosse, doutor?..."
" - sim, para a tosse. se tomar estes medicamentos todos os dias e como deve ser, em morrendo não tosse mais..."

a maioria entende e ri-se. e os que não entendem é certo e sabido que juntam a minha medicação à que já estavam a tomar.

"se a montanha não vem a Maomé, vai Maomé à montanha"

conta-se que certo dia uns árabes renitentes pediram um milagre ao Profeta, como prova da justeza da sua doutrina. então, este ordenou ao monte Safa que viesse até si. o monte fez-se de novas e não obedeceu. Maomé não se deu por achado. virou-se para os provocadores e sentenciou: "irei eu à montanha agradecer a Deus ter poupado uma geração de obstinados ao desastre que seria se a montanha se tivesse deslocado».

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

as melhoras da morte



conheci um velho muito simpático que estava moribundo. ele soube que um dos filhos, que já cá não vinha há décadas, que residia e trabalhava num país distante, vinha propositadamente a Portugal para o ver. 
assim que chegou a Portugal, após uma visita rápida ao pai moribundo, o filho aproveitou para levar a esposa a visitar por sua vez o pai dela, que vivia longe dali num lar de idosos.
entretanto, o moribundo moribundava, nem propriamente vivo nem realmente morto.
finalmente, dias depois, ao fim da tarde, o filho regressou da visita ao sogro.
o velho moribundo acordou. vestiu-se, fez questão de ir fazer companhia à família durante o jantar. parecia animado e feliz. até bebeu um copo de vinho, coisa que não fazia há meses e meses. toda a gente estava encantada com semelhantes melhoras. no fim do jantar deitou-se. no dia seguinte, pela manhã, foi-se embora. para o descanso eterno.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

a tentação do desastre


anda por aí uma onda estranha. cada vez é maior o número de peritos ou candidatos a peritos, bruxos, visionários e afins, que antecipam, com mal disfarçado prazer, a "saída do euro" deste e daquele país - começando pela Grécia, depois Portugal, etc., por aí fora. e pintam a desgraça o melhor que sabem e podem. 
dos países que "saiem" ou são "expulsos", bem se vê. 
claro, a saída do euro é a desgraça completa. só faltava isso. mas será apenas a desgraça completa dos que "saem" ou são "expulsos"?
separando os países "bons" (aqueles que "ficam" no euro), dos países "maus" (aqueles que tem de "sair" ou de ser "expulsos"), o que acontece a uns e a outros? em primeiro lugar, vê-se bem, os países "maus" afundar-se-ão numa depressão medonha, terão de regressar a uma economia de subsistência, e as suas moedas valerão coisa nenhuma no mercado internacional. logo, não poderão comprar nada ao exterior.
acontece que os países "bons", aqueles que tem economias "fortes" e "ficam" no euro, ficam impedidos de exportar as suas maravilhas industriais e tecnológicas, porque à sua volta há só miséria e depressão. e as suas fábricas, excelentes empresas e maravilhoso know how começarão a trabalhar em seco, a criar depósito, a fechar. e vem o desemprego, a recessão, a depressão económica e o desastre. e o "euro" dos que "ficaram" passará a valer nada nos mercados internacionais. o fenómeno começa já a ver-se no abrandamento e até nos indícios de recessão de economias de países "bons", como é o caso da Alemanha. 
não creio que alguém em seu perfeito juízo possa ter prazer, ainda que por mero exercício intelectual, num cenário destes. 
hoje já não sei se o "euro" foi uma boa ou má aposta. não pela ideia em si, que é boa, mas pela forma idiota como foi posto em prática. é caso único de uma moeda única para estados com economias separadas, com finanças separadas, com políticas separadas. andou o carro à frente dos bois. hoje vê-se bem o erro, mas a verdade é que ninguém deu pela asneira antes de a fazer.
agora, na hora do perigo, não há passageiros de primeira nem passageiros de segunda. estamos todos no mesmo barco. em caso de naufrágio, morreremos todos, os "bons" e os "maus", os "bigs" e os "pigs".
esperemos que a tripulação salve o navio, em vez de discutirmos quem deve afogar-se primeiro.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

democracia amansada

vivemos um tempo de grande perturbação de espírito. vemos as coisas pequenas, insignificantes, e deixamos passar as grandes, as que realmente importam. insurgimo-nos contra uns ridículos 40 mil euros de uma deslocação ministerial oficial ao estrangeiro (que manifestamente não podem ser senão, na sua insignificância, um sinal de austeridade patética) e deixamos passar quase em claro as verdadeiras e astronómicas verbas que certos investidores, agiotas, trapaceiros e delinquentes nos deixaram para pagar em certas instituições bancárias. tomamos a nuvem por Juno, atacamos as arvorezinhas, os pequenos arbustos, e esquecemo-nos de atacar a floresta e as suas sequoias. esta mentalidade mesquinha e burra é o terreno onde medra o populismo, a maneira de governar os tansos, submetendo-os sob a aparência de os libertar.
estamos muito sensíveis aos gastos, mas não consideramos as vantagens que eles nos podem trazer. uma coisa é gastar sem retorno, outra coisa é ter mais retorno que aquilo que se gasta. outra coisa ainda é poupar e ficar cada vez mais pobre. porque nunca vi ninguém enriquecer sem investir, quer dizer, gastar.
e nesta estória das poupanças e do clima de engana-meninos em que vivemos, vem a calhar a famosa alteração do modelo autárquico, quer na quantidade de municípios quer na forma de exercer neles o poder democrático. os municípios não são o que são, nem onde são, por questões aleatórias ou sem sentido. eles são o que são por razões históricas, de povoamento, de hábitos de partilha e tomada de decisões, enfim, por coisas que o nosso mundo moderno, ou pós-moderno, como queiram, dispensava muito bem. a reorganização do mapa das freguesias e concelhos não é, porém, de agora. já houve várias ascensões e quedas de concelhos, muitas delas justificadas também por razões históricas. basta reparar na quantidade de pelourinhos (o símbolo do concelho por excelência) que pululam por aí em terras e lugares que já não têm estatatuto de concelho nem poder municipal. mas não é a redução ou alteração do mapa dos concelhos que agora me preocupa. o que me preocupa é a enormidade política e administrativa que se prepara sob o manto sagrado da poupança.
refiro-me à ideia peregrina de tornar os concelhos politicamente monocolores. quer dizer, do espetro político saído de um ato eleitoral, apenas tem relevância o partido mais votado, independentemente do tipo de mais votos ou de maioria que se trate. vai-se poupar uns tostões e o povo, apalermado pela crise, acha muito bem e a democracia vai pelo ribeiro abaixo.
a palavra "concelho" desde logo contradiz essa pretensão absurda. vem do latim concilium e significa reunião, ajuntamento, junta. reunião dos maiores, dos mais velhos, independentemente e mesmo por causa de terem opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos. é para isso que serve reunir e falar. para encontrar o melhor caminho de entre um conjunto de opiniões e propostas diferentes.  essa riqueza vale bem o investimento.



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querem agora reduzir os mandatos das autarquias sob o pretexto da poupança. vai daí, arruma-se de uma vez com o gasto em opiniões minoritárias ou mais minoritárias que a do partido mais votado. desnecessárias, por conseguinte. ficamos só com aquelas que recolherem mais votos, nem sequer é necessária a maioria. vamos então poupar um balúrdio em moedas pretas porque essas opiniões minoritárias, melhor, menos votadas, são inúteis e passamos bem sem elas. mas, ó xente, se fica só o partido que tiver mais votos, então também não precisamos dos autarcas que ele nos queira impingir. basta um. porque todos os outros têm a mesma opinião, quer dizer, são inúteis.
fica muito mais barato e democracia nem vê-la.



quarta-feira, 6 de junho de 2012

a loja de arrumos

para que se pudessem precaver, há uns três anos que eu vinha alertando os meus internos da especialidade de psiquiatria para um futuro inexorável: a transformação do venerável hospital de Sobral Cid, uma instituição de peso na história da psiquiatria portuguesa, numa de duas realidades: a sua extinção pura e simples ou a sua degradação completa, sob a forma de loja de arrumações da psiquiatria universitária. o alerta cumpriu-se.
hoje, o ex-hospital de "Sobral Cid" (custa-me, evidentemente, chamar-lhe este nome) é aquilo por que a psiquiatria universitária há muito tempo esperava: o lugar onde esconder o terço do meio e o mau terço da lei de Black, as insuficiências e os maus resultados da abordagem "biológica" e "cognitivo-comportamental". o lado  tecnológico, bonito, exibível, limpo, "científico", para congressista ver, fica na psiquiatria universitária. os casos de "média duração", os "casos difíceis", os aborrecimentos intermináveis, escondem-se nos baixos da estrutura,  fora de portas, para que poucos vejam. e, ainda assim, sob o controle apertado dos doutores da ciência.
nós, os que trabalhámos nos antigos hospitais psiquiátricos, sempre convivemos com as nossas próprias insuficiências, sempre tivemos consciência dos limites da nossa arte, e até sempre tivemos a noção de que urgia uma profunda reforma da prestação dos cuidados de psiquiatria e saúde mental. sempre soubemos que o lugar dos doentes crónicos era noutro tipo de estruturas, residenciais e autonomizadoras, sob projetos de reabilitação virados para a realidade exterior, para a vida do mundo tal como ele é. sempre soubemos que os psiquiatras sozinhos não iriam a lado nenhum. que a organização multidisciplinar e transprofissional era a única possibilidade de intervenção. mas quanto a isso nada melhorou, pelo contrário. desapareceram os hospitais psiquiátricos mas não os doentes crónicos nem a sua degradação institucional, nem a forma de lidar com ela. se estavam em instituições públicas, mudaram para instituições privadas sob o mesmo modelo, mas sem as "complicações" e custos da transprofissionalidade. mudaram-nos sem qualquer preparação prévia, como se não tivessem história, relações, amizades, raizes. esconderam-nos. e, pior que isso, escondem agora também os doentes que não se "curam" em 10 dias ou que teimam em resistir às terapêuticas.
as próprias consultas externas, que enxameavam os lugares centralizados onde funcionavam, estão sendo agora espalhadas pelos vários  centros de saúde da região, sob a capa de uma espécie de "psiquiatria comunitária". já ninguém as vê ou vai ver. estão escondidas.
hoje já não temos uma "má psiquiatria" visível a olho nu. para a ver é preciso organizar uma excursão cuidadosamente planeada.
parece tudo melhor. mas está tudo na mesma ou pior.


terça-feira, 15 de maio de 2012

da reorganização dos serviços de psiquiatria em Coimbra

a propósito da reorganização dos serviços de psiquiatria em Coimbra e do que se vai dizendo sobre isso, pela voz dos mais lídimos representantes da psiquiatria universitária: 

tenho muita dificuldade em compreender em que diferiam as condições de alojamento, de clima, de reabilitação e dignidade humana do hospital de Lorvão, relativamente às condições do hospital de Sobral Cid ou do Centro de Arnes ou, até, de certos Departamentos mais ou menos "exemplares" de Psiquiatria e Saúde Mental, designadamente da Zona Centro e, mesmo, das existentes nas impecáveis e amplas instalações do HUC. devo dizer que estou à vontade porque os conheço todos. 
tenho também muita dificuldade em compreender em que diferem as respetivas equipas multidisciplinares, e as coisas que fazem, ou faziam, das que são feitas em setting universitário. pois, mas a questão não é essa, obviamente. a questão é de hegemonia, de toma dos lugares de direção e de fuga às filas de excedentários e da mobilidade anunciada. tudo o mais são sofismas e coisas que, para parecerem razões, se dizem por dizer. 
é claro que o futuro será dirigido por quem tem mais estatuto e títulos do que propriamente diferenças de fazer. e está certo, sempre assim foi e há de ser. pelo menos, têm mais entrada nos centros decisórios.
porém, do muito que se tem dito sobre o tema, não houve ainda uma única referência ao que se fará de diferente. apenas se promete, vagamente, que se fará melhor, ou se calha com mais "ciência" e mais "tecnologia", o que sempre se tem feito. 
Unidades de Cuidados Continuados de Psiquiatria, isso é o quê: asilos velhos com nome novo? aonde vai o tempo em que se falava de residências comunitárias, reabilitação cívica ("empowerment"), formação profissional, emprego protegido, enfim, essas coisas diferentes... e, é claro, aonde vai a Psiquiatria Comunitária, agora transformada em consultas de psiquiatria nos Centros de Saúde... 
acabar com os velhos hospitais psiquiátricos, sim, concerteza. não posso estar mais de acordo. mas se apenas mudamos os doentes, internados ou ambulatórios, de serviços velhos, onde estão adaptados, para serviços novos, onde terão de se adaptar, e transferi-los de uns sítios para os outros, muito pouco mudará efetivamente no modelo de abordagem da doença mental e menos ainda na dignidade humana dos doentes. e mais do que o genuíno interesse pelo bem estar dos doentes nesta transferência dos hospitais psiquiátricos públicos para instituições privadas - pois é disso que se trata -, estão prioritariamente em causa interesses de natureza orçamental, já que sai muito mais barato tê-los internados em instituições privadas. 
por sua vez, sai muito mais barato manter o mesmo modelo de intervenção, agora dirigido pelo hospital universitário, do que por em marcha uma reforma profunda dos serviços de psiquiatria e saúde mental. 
e para mais, este modelo "biológico" dominante é também o que mais convém aos interesses da medicina privada. mas os interesses são evidentemente respeitáveis, já que é neles e deles que vivemos. não vale a pena ser hipócrita. 
bom, e finalizando, há uma questão que, por absurda, me recuso a admitir: que esta e outras tomadas de posição da psiquiatria universitária traduzam o receio de vir a ser escorraçada para o hospital psiquiátrico que ainda sobrevive, saindo, assim do convívio com as restantes especialidades da medicina. isso, sim, seria o retrocesso completo. 

mas para salvar a própria pele não vejo necessidade nenhuma de dizer mal dos outros. 



PS: dentro de uma guerra há sempre lutas internas entre generais do mesmo exército. neste caso, a luta pelo salão das tecnologias de ponta. uma comédia.

(josé cunha-oliveira, 14-05-2012)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

a criação do mundo


1. o grande criador de tudo é uma entidade chamada "milhões de anos". ninguém me explica é como essa entidade chamada "milhões da anos" faz as coisas. nem sequer me dão tempo para saber se é verdade...

2. estou meio tentado a acreditar no conto do "Big Bang". o nada explodiu e pum!, cá estamos, eu e tudo, milhões de anos depois.
mas eu acho que o nada simplesmente saiu de outro tudo, pelo buraco do fundo. é sempre o mesmo rebuliço, o mesmo mar, os mesmos vendavais, os mesmos remoinhos, a mesma poesia.

3. a esta hora, umas pequenas células do meu organismo devem estar a pensar na origem do universo onde vivem, isto é, aquela coisa impossível de compreender que sou eu próprio. e concluem, se forem cientistas inteligentes, que nasci de uma fusão primordial entre partes minúsculas de dois universos. e dessa fusão surgiu um Big Bang, que deu origem ao universo onde elas vivem.

sábado, 31 de março de 2012

partos em casa

veio agora a Ordem dos Enfermeiros com a redescoberta dos partos em casa, porque assim e porque assado, porque torna e porque deixa, e competências para aqui e vantagens para ali, e enfermeiros e médicos.
pois muito bem. que alguém contrate um(a) enfermeiro(a) parteiro(a), perdão, obstetra, ou mesmo um(a) médico(a) obstetra, para ter o seu parto assistido em casa, é um problema de contratante e contratado(o), ninguém tem nada com isso. ponto final.
mas Serviço Nacional de Saúde é outra coisa.
virem agora com a conversa do parto natural e dos 85 a 90% dos casos em que corre tudo bem, é que não.
primeiro, se o parto é assim tão natural, coisa e tal, que vai lá fazer o parteiro ou o obstetra: não podem as senhoras parir na horta ou acocoradas em casa?
segundo, se 85 a 90% dos partos correm bem, quer dizer que 10 a 15% não correm assim tão bem. e, então, no caso desses 10 a 15% quem nos acode? quem assegura o transporte imediato a um centro especializado, se a coisa ocorre, digamos, na serra de São Pedro Dias ou em casa do diabo mais velho? e, numa altura em que a contenção financeira está a condicionar o transporte de ambulância, que farão estes senhores enfermeiros parteiros? rezam ao santo da freguesia, fazem uma novena, benzem a mãe e o feto?
eu já nem falo das condições de higiene e assepsia e dos problemas logísticos associados ao parto no domicílio.
já nem falo dos processos que podem correr por mau sucesso, negligência e má prática aos enfermeiros parteiros, perdão, obstetras. a mim pouco me importa. o problema é deles. preocupa-me é a decadência das condições de saúde pública portuguesa, que tanto custaram a construir.
o que eu não percebo é muito bem esta vontade de andar para trás. quer dizer, percebo até muito bem. para um(a) enfermeiro(a) parteiro(a), perdão, obstetra, ir assistir um parto ao domicílio é outra euro-coisa. mas lá porque o parto ao domicílio é mais euro-rentável para os enfermeiros da Ordem, vamos nós ter de estragar a taxa de mortalidade infantil, que é uma referência a nível mundial?

sexta-feira, 30 de março de 2012

a Casa Pia


na verdade, o caso Casa Pia indigna. nenhum dos diretores da casa santa, que a dirigiram da maneira que sabemos, foi chamado à responsabilidade pelo que foi sucedendo ao longo dos muitos anos. ninguém se preocupou em reformá-la a tempo e horas, tornando-a uma respeitável residência e uma escola exemplar para crianças órfãs ou rejeitadas. ninguém quis saber. puseram vendas nos olhos e tapumes nos ouvidos. não foi nada com eles. os miúdos andaram por onde quiseram ou por onde os mandaram, terão sido abusados ou terão tirado partido, terão ganho dinheiro e terão dado dinheiro a ganhar, e ninguém se importou. comércios às claras e às escuras ninguém os viu. nada disso. rebentada a bomba, e só para o lado mediático das profundezas do sexo, há que salvar os despojos valiosos e deixar os estilhaços para quem teve que levar com eles. a populaça, essa, quer é sangue, não importa de quem. e se for um bode expiatório dos bons, um bode expiatório mediático, tanto melhor.
quero já dizer que não sei quem está inocente. mas sei que quem dirigiu a coisa inocente não está. porque pelo menos permitiu que hoje se fale de culpados.



quinta-feira, 29 de março de 2012

a psiquiatria em Coimbra

podia escrever sobre a psiquiatria em Coimbra, sobre a fusão do CHPC com o CHC e o HUC, na entidade única a que chamam CHUC. mas não me apetece. de um lado, porque estão os professores universitários, repudiando o regresso aos asilos, no que têm imensa razão, e perfilando-se como futuros chefes de serviço e comandantes da nova arca de Noé; do outro lado, porque está um anónimo e inofensivo corpo clínico de um ex-hospital psiquiátrico, cuja única ambição é ser integrado, com a honra possível e o menor desproveito, num serviço onde, desconfiam, não vão contar para nada, mas que, ao menos, possa ter algo que ver com a psiquiatria universitária, quer do ponto de vista intelectual, quer do ponto de vista de instalações. é por isso que não me apetece escrever sobre a psiquiatria em Coimbra. em tempos, o hospital Sobral Cid, integrante depois do CHPC, teve uma palavra importante, muitas vezes decisiva, a dizer sobre a psiquiatria em Coimbra e mesmo em Portugal. teve até figuras de proa da psiquiatria portuguesa. hoje não conta para nada. com exceção do serviço de inimputáveis perigosos, que ninguém quer perto de si, talvez só na área da Justiça, e com exceção do serviço a que erradamente chama de "violência doméstica", porque mais deveria fazer parte de um departamento da Justiça do que de um serviço da Saúde, não tem nada de novo ou de diferente a dar a ninguém. e mesmo nos serviços onde é menos mau, ou até mesmo bom, não passa de uma cópia do que fazem os professores no serviço universitário de psiquiatria. é por isso que não me apetece falar do assunto. o hospital Sobral Cid, perdão, o CHPC, teve ainda, recentemente, a oportunidade de criar um serviço comunitário de saúde mental, que fizesse a diferença e a razão de ser. perdeu a oportunidade e transformou-a num fiasco. é por isso que não me apetece falar do assunto.

sábado, 17 de março de 2012

a propósito de templo

a palavra templo implica o conceito de sagrado, podendo tratar-se de um espaço exterior organizado e simbólico mas também do espaço íntimo, interior. a sua história é tão antiga como a humanidade.
no mundo romano, para fazer a leitura dos sinais celestes, o áugure delimitava com o seu bastão um setor do céu. e nesse setor celeste, que representava e continha toda a cosmogonia, observava os fenómenos naturais, nomeadamente a passagem das aves. a esse setor do céu chamava templum
mais tarde, o templum passou a designar o lugar ou edifício sagrado onde se praticava essa observação e interpretação do céu. 
o radical indoeuropeu "tem-", de onde deriva o termo latino templum e as palavras gregas tomos (por exº, em: tomo-grafia) e temenos, contém a ideia de “cortar”, “separar”, “delimitar”, “dividir”. desde a mais remota antiguidade, pode ser um lugar ao ar livre, em bosques, em cavernas ou no alto de montes. a palavra correspondente a templum em Grego, temenos, designava o lugar reservado aos deuses, a cerca sagrada que envolvia um santuário, constituindo um lugar intocável. o templo é a habitação do divino, o lugar da Presença por excelência. 
por isso, todo o templo está em linha com o mundo celeste e representa o “centro” do mundo. o espaço nasce nele e resume-se nele. é por isso que a orientação constitui um dos elementos principais da construção do templo. ele é o resumo do macrocosmos e a imagem do microcosmos. consequentemente, é ao mesmo tempo uma imagem simbólica do cosmos, do mundo e do homem. o templo não é apenas o edifício sagrado. 
ele é símbolo de “santuário” em múltiplos sentidos, incluindo o homem que se esforça para alcançar um nível espiritual no mundo quotidiano. a sua arquitetura é uma imagem da representação que o homem faz do divino, sendo pois uma réplica terrestre dos arquétipos e da cosmogonia celestes. 
nele, construção e construtor são colocados ao mesmo nível e partilham o mesmo destino. a humanidade que se dedica a construir o templo torna-se idêntica a ele. 
no mundo latino tendia-se a confundir o que é divino, isto é, o que tem propriedades divinas, com aquilo a que chamamos substantivamente “deus”; mas para os gregos o “théos”, que traduzimos por “deus”, não é sinónimo de um “deus” substantivo, é uma propriedade das coisas ou dos lugares. diz-se que algo é “théos” porque tem propriedades divinas, faz parte do “pleroma” - a totalidade dos poderes divinos -, e não propriamente porque seja um “deus”, quer no sentido animista, quer no sentido politeista, quer no sentido monoteísta.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Pinóquio, um boneco cheio de surpresas

todos ouvimos falar de Pinóquio, o boneco a quem o nariz crescia à medida das suas mentiras. um nariz que, estando muito na moda, alguns autores da escola psicanalítica tendem a confundir, de forma simplista, com uma mera manifestação fálica. por outro lado, o seu amigo Grilo Falante tem sido também objeto de interpretações simplistas, tornando-se, em certos meios, um protótipo do moralista hipócrita. mas, tanto o nariz de Pinóquio como o Grilo Falante, ainda que carregados de significado, são apenas uma parte menor das particularidades da estória do boneco de Geppetto.
começa tudo pelo nome: Pinóquio. este nome, no italiano toscano de Collodi – o autor da estória – significa “pinhão”, mas pode ser também uma palavra composta, onde entra “pin-“ e “occhio”, sendo que “pin-“ se pode referir a “pinheiro”, “pino” e pineal”, e “occhio” a “olho”. além disso, o narrador da estória explica-nos que o nome lhe foi sugerido por uma conhecida e vasta família de “Pinóquios”, da qual “o mais rico de todos pedia esmola”. isto lembra uma comunidade de tipo monástico ou outra, em que um dos frades é encarregado de recolher os donativos.
isto é, o nome “Pinóquio” não é fruto do acaso ou da arbitrariedade literária. assim como não é casual nem arbitrário o nome Mestre Cereja, que em italiano, “ciliegia”, pode ser um trocadilho com “cílios egípcios” – as pestanas egípcias, o olho de Hórus.
Collodi, pseudónimo literário do verdadeiro autor, Carlo Lorenzini, é ele mesmo significante: os “colódios” (collodi) são soluções viscosas de piroxilina numa mistura de álcool e éter, às vezes nalgum outro solvente, usadas principalmente em terapêutica ou em fotografia pré-digital. é neste último sentido que entendo o significado do pseudónimo, tanto mais que era esse o processo de obter fotografias já no tempo de Collodi. quer dizer, Collodi é, pois, alguém que mostra ou revela simultaneamente dois aspetos da mesma realidade, pois que uma caraterística importante dos colódios é a sua dualidade, o facto de simultaneamente serem positivos (quando sobre um fundo escuro) ou negativos (quando vistos à transparência). tudo isto apesar de o autor ter atribuído a inspiração para o pseudónimo ao nome da terra natal de sua mãe.
mas vamos à estória. tudo começa com uma canhota de “madeira”, um pedaço informe de uma substância primordial que em Latim se diz “materia” e que em Português deu as palavras “matéria” e “madeira”. ora, os mestres que trabalham a madeira (materia) chamam-se “carpinteiros” – como o São José da biografia corrente de Jesus menino, esse São José que emigra com toda a família para o Egito, até que o filho faça 12 anos e se torne capaz, quando regressa à pátria, de discutir em pé de igualdade com os doutores.
o primeiro dono daquele pedaço de matéria bruta (madeira), o Mestre Cereja ou Olho de Hórus, como vimos, era um carpinteiro, sim senhor, mas tinha o estranho passatempo de “ensinar a tabuada às formigas”. Que é como quem diz, iniciava os noviços da sua Ordem (as “formigas”) nas ciências da Matemática. posso imaginá-lo na posição egípcia, sentado, com os braços colados ao tronco, as mãos poisadas sobre os joelhos. podemos até imaginá-lo a brincar com os teoremas e paradoxos da aritmética e da geometria da ciência egípcia, transmitida aos gregos da Idade Clássica.

Mestre Cereja, oferece a canhota de madeira a Geppetto, pai e criador de Pinóquio. e mais uma vez, o nome escolhido está longe de ser arbitrário. Geppetto é um diminutivo de Giuseppe, José (o carpinteiro de Nazaré, o que emigrou para o Egito – a pátria da Sabedoria superior). e as suas consoantes GPT apontam uma vez mais para o país do Nilo.
voltemos à estória: seria aquela canhota de madeira um simples pedaço de matéria bruta, fria, inanimada? logo se vê que não: a canhota surpreende-nos porque geme, queixa-se, aplaude e até provoca uma luta de mestres. moral da estória, é uma matéria bruta animada, capaz de potencialidades, de se transformar e evoluir. Pinóquio é um poço de boas intenções, animado de boa índole, mas é também irrequieto, traquina, mentiroso, estouvado, volúvel, influenciável e impulsivo. o nariz erétil, mais que um símbolo fálico ou um atributo dos mentirosos, é um sinal de alarme, que a cada momento lhe mostra a diferença entre as boas intenções e as forças ainda não domesticadas da sua natureza em bruto que o impedem de as por em prática. tão depressa ouve o Grilo Falante da Consciência, como logo se esquece dos seus conselhos. precisa de evoluir, crescer por dentro, pacificar-se, aperfeiçoar-se, domesticar-se, até ser um “menino a sério”. mas para isso vai necessitar da proteção ou assistência da boa fada madrinha, que só no fim da caminhada o pode dotar da verdadeira vida.
Pinóquio tem de fazer a travessia da vida. vai para a escola, em busca do Conhecimento. mas depressa as tentações da vida se atravessam no seu caminho. interrompido pela raposa e pelo gato, é atraido pelo o fascínio dos bens materiais e da fama fácil. deixa-se enganar no conto do vigário, julgando poder semear a árvore das patacas. vende os livros que seu pai criador lhe havia comprado com a venda do próprio casaco. e com o dinheiro da venda dos livros compra um bilhete para assistir a um teatro de fantoches, acabando por fazer parte integrante do espetáculo. uma vez mais, o fascínio da fama e do brilho enganador dos palcos deste mundo.
noutro momento da sua caminhada, Pinóquio é atraído para a ilha da felicidade, um lugar sem escola e sem leis, ou seja, sem conhecimento e sem moral, onde as crianças podem fazer tudo o que lhes der prazer - uma metáfora da vida moderna, onde reina a gratificação imediata, a satisfação dos impulsos, o hedonismo e o desprezo pelo conhecimento verdadeiro. os rapazes dessa ilha, e com eles Pinóquio, acabam transformados em burros, isto é, em alguém que não consegue sair das teias do reino da matéria.
Pinóquio volta para casa mas a casa está vazia. descobre que Geppetto foi engolido por uma baleia. em busca do pai, é ele também engolido pela baleia, nas entranhas onde mergulha na escuridão da gruta iniciática, e, encontrando o seu Criador, se prepara para receber, finalmente, a verdadeira luz da vida.

constitucional ou quê?

depois daquela espécie de "argumentos" chocarreiros, de quem não sabe do que está a falar; depois das repetições ad nauseam dos argumentos do decrépito conservador do Museu da Ortografia; depois das manifestações do mais puro chauvinismo, xenofobia e antibrasileirismo vergonhoso; depois das "opiniões" de certos [poucos] professores de Português, que, pagos para ensinar a norma e não para a discutir, a contestam para não terem o trabalho de a aprender; depois da autorizada lição de moral do Jornal de Angola sobre o "negócio" em que consiste ter uma norma única para toda a lusofonia; depois da autorizada opinião de certos entendidos, como engenheiros [poucos], médicos [poucos], construtores, vendedores, delegados, cartomantes e, até trolhas e pedreiros:

depois de tudo isso falhar,

vem agora um entendido em leis argumentar juridicamente a coisa linguístico-literária e contestar a constitucionalidade daquilo que melhores e mais sensatos constitucionalistas (suponho eu, pois que os conheço melhor e de há mais longa data) até agora não contestaram.

vou marcar imediatamente consulta para tão grande sumidade, já que me preocupa a constitucionalidade de uma lista de coisas não menos importantes e sérias, e penso que ele será o homem indicado para me valer:
- senhor doutor, a fome, o desemprego, o esbulhamento dos salários e das pensões, a retirada do subsídio de férias e de Natal, a subida desbragada dos impostos e das portagens, o desemprego galopante, todas as outras malfeitorias várias de que temos sido alvo, a pobreza nas ruas e vielas, a injustiça, a falta de acesso à saúde e à habitação e a falta de respeito pelos direitos humanos, tudo isso, é constitucional, ou quê?

sábado, 11 de fevereiro de 2012

cultos antigos em formas modernas.

gosto de estudar as relações entre os cultos passados e os cultos aparentemente modernos. delicio-me quando vejo que o culto da Senhora do Leite, na sé de Braga, é a continuidade do culto importado da deusa Ísis, adaptado ao culto local anterior da deusa mãe nutridora; ou o mosteiro da Batalha, também chamado mosteiro de Nossa Senhora da Vitória, implantado em local sagrado anterior dedicado à deusa Victoria. ou a todos os lugares onde há igrejas de São Pedro, implantadas sobre pedras sagradas.
delicio-me com curiosas redundâncias com que o tempo parece querer esconder as origens do culto, como é o caso do santuário de Nossa Senhora de Covadonga, nas Astúrias, cujo significado é "Nossa Senhora da Gruta da Senhora".
vejo as "sepulturas antropomórficas" em lugares onde construíram igrejas. não é preciso ir muito longe, basta ir a Penela, à sé de Viseu ou a "São Pedro" de Lourosa. as ditas "sepulturas" são adequadas ao tamanho de crianças, talvez entre os 8 e os 12 anos, no máximo, e absolutamente inadequadas a conter cadáveres cobertos seja do que for. se lhe deitássemos terra por cima ficariam com o nariz e outras coisas de fora. não é preciso muita imaginação nem muita inteligência para compreender que eram lugares de "morte temporária", simbólica, ou seja, lugares onde se "morria" para uma condição, "renascendo" para outra. quero dizer, ou lugares de iniciação ou lugares de cerimónias de passagem. daí a necessidade da sua cristianização, de uma forma que os "resilientes" labregos pudessem compreender e aceitar.
aqui há tempos, fui visitar pela enésima vez a capela meio perdida da Senhora da Estrela, na serra de Sicó, santuário que continua o culto ancestral daquela gruta sagrada. e para lá da igreja - que parece ter sido construída para funcionar como uma rolha que impede o acesso à gruta sagrada -, vejo no saguão da gruta, em forma de vulva, uns simpáticos pares de jovens em volta de uma fogueira, tal e qual como soe dizer-se a respeito dos "homens das cavernas". e dou comigo a pensar: "homens das cavernas"? ou seriam simplesmente "homens que frequentavam santuários rupestres", como nós frequentamos as igrejas?

sobre o culto da Senhora da Estrela, para o qual me chamou a atenção um doente meu, que tinha por alcunha o Siroilas, consta entre o povo uma estranha lenda: diz-se que antigamente, estes lugares ficavam junto ao mar. e certo dia um pescador saiu para a faina. veio um temporal e o barco andou à deriva vários dias. então, o pescador fez a promessa de que se chegasse a terra são e salvo, construiria, no local onde aportasse, uma capela em honra de Nossa Senhora. apareceu no céu uma estrela e o pescador salvou-se por milagre. do cumprimento da promessa surgiu a capela.
o que é estranho nesta lenda é que há milhões de anos esta região calcária teve efetivamente relação com o mar, que hoje está a mais de trinta quilómetros de distância. mistérios daquilo a que chamamos a memória das gentes...
perto daqui, no alto de outro monte da mesma serra, existe um culto não menos estranho e não menos relacionado com o mar: o culto da Senhora do Círculo, que atrai pescadores da zona de Quiaios...
a Senhora do Círculo. é um lugar de culto ímpar, localizado num dos montes da serra de Sicó, no concelho de Condeixa a Nova, perto da estrada nacional nº 1. é formado por um muro de pedra em círculo, com os seus 30 metros de diâmetro (perdoem-me a imprecisão), demarcando um recinto que tem no centro uma espécie de púlpito, de pedra, perto do qual existe uma capela metade abaixo do solo, que parece recordar os velhos dólmens.
tal como o culto da Senhora da Estrela, devo a minha curiosidade por este lugar ao velho Siroilas.
o lugar sagrado está relacionado com uma devoção própria dos pescadores da região da Figueira da Foz. na verdade, avista-se dali o mar da Figueira, pelo que o lugar pode ter sido também uma referência, um farol, que orientava os navegantes durante a noite.

PS: no lugar de Furadouro consta uma estória, que ouvi de viva voz de gente de lá, segundo a qual os antepassados teriam vindo lá de cima, do alto da Senhora do Círculo, na sequência de uma ordem de expulsão. isto aponta para uma reminiscência castreja e para a política romana de fazer descer as populações do alto dos montes para lugares mais controláveis política e administrativamente. o problema é que me fartei de procurar vestígios desse castro e não os encontrei. a menos que sejam precisamente o círculo e o local sagrado atuais.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

IVG - uso e abuso

em Portugal realizaram-se nos últimos 5 anos, 80 000 abortos legais, "por opção da mulher", 13 000 (1/6) dos quais reincidentes. passámos do problema dos abortos clandestinos ao aborto como método contracetivo. e tudo isto de graça e sem qualquer taxa moderadora. quer dizer, totalmente à custa dos mesmos tolos de sempre: os contribuintes.
viva, que luxo! ele sempre é verdade que somos um país em crise?

acresce que, enquanto isso, há crianças desvalidas que passam todo o género de necessidades e misérias. não ficaria nada mal que cada mulher que aborta legalmente (coisa que não contesto) pagasse ao menos uma taxa moderadora que pudesse ser aplicada no desenvolvimento e educação das crianças desvalidas.


PS: aproveito para sugerir que a taxa moderadora seja cumulativa, isto é, suba em igual valor ao inicial, de aborto para aborto para a mesma mulher (exº 50 - 100 - 150 euros, etc.). é uma forma de contribuir para o fim do aborto como método contracetivo.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

MGF

vamos lá falar de coisas sérias. hoje é o Dia Internacional da Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina (MGF). não posso estar mais de acordo com o dia e com a repressão total dessa prática. o que eu acho um bocado disparatada é a importância que se dá e o alarido que se está a fazer em Portugal sobre o tema. Portugal é um país de MGF? Portugal fica aonde, afinal? alguém quer ganhar notoriedade pública e fazer carreira no ministério da Saúde ou na política com um temeco sem interesse prático nenhum e que, ainda por cima, da maneira que é posto, nos coloca mal em termos de imagem internacional. essa questão, estatisticamente minorca e confinada a um certo núcleo de imigrantes, já tem melhor ministério para tratar dela: o ministério da Justiça.
outros países europeus terão mais razões para se preocupar com isso do que nós.
diz quem diz, ou seja, a "responsável pelo departamento de saúde reprodutiva da Direção-Geral da Saúde" : "em Portugal ainda não há números, mas o facto de não existirem dados estatísticos “não significa que [a MGF] não seja uma realidade”. ora aí está: isto não são factos, não são números, não é nada. é o mesmo que dizer que "em Portugal ainda não há dados sobre o número de imbecis, mas o facto de não haver números não significa que a imbecilidade não exista".
isto é um abuso da nossa credulidade, um alarmismo patético. apontem números e digam aonde é que em Portugal há MGF. e entreguem os casos à Justiça, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sei lá, mas não à Saúde. se fazem favor.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

a velhice que estamos a criar

aqui há dias, estava eu muito descansado, a fumar o meu cigarro, de castigo à porta do café, quando chega um velhote com fome de conversa e me lança este provérbio: "janeiro geoso, fevereiro ventoso, março frio e abril chuvoso fazem o ano formoso". ouvi-o atentamente, porque nunca se perde nada em falar com alguém mais velho do que nós. e patati e patatá e foi um prazer falar consigo. fico contente que tenha sido para ele um prazer falar comigo. mas pesa-me essa necessidade compulsiva de meter conversa com alguém que não se conhece de lado nenhum. a solidão dos velhos começa a ser um escândalo nacional. se calhar não adianta botar as culpas a ninguém. é, simplesmente, um sinal dos tempos. e tenho para mim que pior que estes velhos solitários ainda estão aqueles que vivem reclusos em cadeias a que chamam "lares de idosos". obrigados a pedir licença para tudo. presos pelo crime de serem velhos. obrigados até, por recente opção do nosso governo, a partilhar as suas celas, perdão, quartos, com mais um um ou dois presos, além dos companheiros de quarto habituais até aqui.
em 2012, até ao momento, em Lisboa, já foram encontrados mortos em suas casas cerca de duas dezenas idosos. e em 2011 os bombeiros da capital encontraram cerca de 80 idosos mortos em casa. é caso para dizer que todos estes idosos são encontrados mortos porque ninguém se interessou antes por encontrá-los vivos.
os velhos desataram a morrer sozinhos. todos os dias se descobre mais um, mais dois...não sei se morrem numa solidão escolhida se morrem numa solidão imposta. para uns será assim, para outros não. seja como for, está em causa uma profunda patologia da afetividade, dos laços de parentesco e dos laços de pertença: eles, esses velhos, ou perderam laços que não souberam preservar, ou foram-lhe cortados os laços que gostariam de manter.
é a sociedade que estamos a criar, a velhice que estamos a construir. já não sei para que serve o aumento da esperança de vida, que nos conduz a uma velhice destas. vivemos para o presente, até que damos conta que o futuro, a consequência de todos os presentes, já chegou.