sábado, 11 de fevereiro de 2012

cultos antigos em formas modernas.

gosto de estudar as relações entre os cultos passados e os cultos aparentemente modernos. delicio-me quando vejo que o culto da Senhora do Leite, na sé de Braga, é a continuidade do culto importado da deusa Ísis, adaptado ao culto local anterior da deusa mãe nutridora; ou o mosteiro da Batalha, também chamado mosteiro de Nossa Senhora da Vitória, implantado em local sagrado anterior dedicado à deusa Victoria. ou a todos os lugares onde há igrejas de São Pedro, implantadas sobre pedras sagradas.
delicio-me com curiosas redundâncias com que o tempo parece querer esconder as origens do culto, como é o caso do santuário de Nossa Senhora de Covadonga, nas Astúrias, cujo significado é "Nossa Senhora da Gruta da Senhora".
vejo as "sepulturas antropomórficas" em lugares onde construíram igrejas. não é preciso ir muito longe, basta ir a Penela, à sé de Viseu ou a "São Pedro" de Lourosa. as ditas "sepulturas" são adequadas ao tamanho de crianças, talvez entre os 8 e os 12 anos, no máximo, e absolutamente inadequadas a conter cadáveres cobertos seja do que for. se lhe deitássemos terra por cima ficariam com o nariz e outras coisas de fora. não é preciso muita imaginação nem muita inteligência para compreender que eram lugares de "morte temporária", simbólica, ou seja, lugares onde se "morria" para uma condição, "renascendo" para outra. quero dizer, ou lugares de iniciação ou lugares de cerimónias de passagem. daí a necessidade da sua cristianização, de uma forma que os "resilientes" labregos pudessem compreender e aceitar.
aqui há tempos, fui visitar pela enésima vez a capela meio perdida da Senhora da Estrela, na serra de Sicó, santuário que continua o culto ancestral daquela gruta sagrada. e para lá da igreja - que parece ter sido construída para funcionar como uma rolha que impede o acesso à gruta sagrada -, vejo no saguão da gruta, em forma de vulva, uns simpáticos pares de jovens em volta de uma fogueira, tal e qual como soe dizer-se a respeito dos "homens das cavernas". e dou comigo a pensar: "homens das cavernas"? ou seriam simplesmente "homens que frequentavam santuários rupestres", como nós frequentamos as igrejas?

sobre o culto da Senhora da Estrela, para o qual me chamou a atenção um doente meu, que tinha por alcunha o Siroilas, consta entre o povo uma estranha lenda: diz-se que antigamente, estes lugares ficavam junto ao mar. e certo dia um pescador saiu para a faina. veio um temporal e o barco andou à deriva vários dias. então, o pescador fez a promessa de que se chegasse a terra são e salvo, construiria, no local onde aportasse, uma capela em honra de Nossa Senhora. apareceu no céu uma estrela e o pescador salvou-se por milagre. do cumprimento da promessa surgiu a capela.
o que é estranho nesta lenda é que há milhões de anos esta região calcária teve efetivamente relação com o mar, que hoje está a mais de trinta quilómetros de distância. mistérios daquilo a que chamamos a memória das gentes...
perto daqui, no alto de outro monte da mesma serra, existe um culto não menos estranho e não menos relacionado com o mar: o culto da Senhora do Círculo, que atrai pescadores da zona de Quiaios...
a Senhora do Círculo. é um lugar de culto ímpar, localizado num dos montes da serra de Sicó, no concelho de Condeixa a Nova, perto da estrada nacional nº 1. é formado por um muro de pedra em círculo, com os seus 30 metros de diâmetro (perdoem-me a imprecisão), demarcando um recinto que tem no centro uma espécie de púlpito, de pedra, perto do qual existe uma capela metade abaixo do solo, que parece recordar os velhos dólmens.
tal como o culto da Senhora da Estrela, devo a minha curiosidade por este lugar ao velho Siroilas.
o lugar sagrado está relacionado com uma devoção própria dos pescadores da região da Figueira da Foz. na verdade, avista-se dali o mar da Figueira, pelo que o lugar pode ter sido também uma referência, um farol, que orientava os navegantes durante a noite.

PS: no lugar de Furadouro consta uma estória, que ouvi de viva voz de gente de lá, segundo a qual os antepassados teriam vindo lá de cima, do alto da Senhora do Círculo, na sequência de uma ordem de expulsão. isto aponta para uma reminiscência castreja e para a política romana de fazer descer as populações do alto dos montes para lugares mais controláveis política e administrativamente. o problema é que me fartei de procurar vestígios desse castro e não os encontrei. a menos que sejam precisamente o círculo e o local sagrado atuais.

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