domingo, 21 de dezembro de 2008

crise

estamos todos afundados nesta enorme crise.
diz-se que é uma crise financeira, que reboca uma crise económica, que puxa uma crise social. estamos todos à procura de culpados, como se a crise fosse o produto de ações individuais de meia dúzia de vilões.
o que se vê por aí são uns tantos pequenos, médios e grandes investidores que alinharam num jogo tolo, que pensavam construir fortunas e refortunas na roleta das ações e dos fundos de investimento, que alinharam nas miragens de lucros impossíveis, que entregaram a sua cupidez a donas-brancas encartadas, que fizeram e fariam tudo para ir buscar dividendos onde o diabo lhos prometesse. os verdadeiros culpados não são os que prometeram lucros e dividendos e faliram no jogo do castelo de cartas. os verdadeiros culpados são os ávidos de lucro e de dinheiro que entraram no jogo. são todos os milhões de corruptos anónimos e coitados que recorreram aos bons ofícios de corretores e gestores de fortunas, no objetivo único e final de enriquecer ou ficar mais rico sem mexer uma palha.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

muntazer al-zeidi

Muntazer al-Zeidi, o repórter iraquiano que jogou os próprios sapatos contra George W. Bush, tornou-se, da noite para o dia, na personagem mundial de 2008. na verdade, o seu ato simbólico fez mais pela humilhação do ocupante do que todos os atos violentos e de propaganda até hoje realizados em todo o mundo contra a ocupação americana do Iraque.

dificilmente um presidente dos Estados Unidos da América do Norte poderia ter um final de mandato mais cómico, quer dizer, mais humilhante e ridículo.
daí o incómodo que Muntazer al-Zeidi passou a constituir para o governo iraquiano, que está a braços com um interessante dilema: ou castiga a ofensa de lesa majestade ao imperador do mundo ou desvaloriza o ato para não fazer de Muntazer al-Zeidi um herói transnacional de caraterísticas messiânicas.
seja como for, ele é candidato a personagem mundial de 2008, mesmo à frente de Barack Obama.


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ps em 19-12-2008:
afinal, o homem pediu perdão. soçobrou. voltou a ser um homem normal. passa, assim, de herói a um vulgar cidadão momentaneamente perturbado. mas a perturbação não deixa de ser um sintoma de um transtorno mais vasto que ultrapassa a mera dimensão pessoal. e o ridículo permanece ridículo.
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ps em 04-01-2009:
talvez não seja assim tão fácil. o julgamento foi adiado. é preciso deixar que a memória fugaz se esqueça, que o assunto caia num limbo. talvez, entretanto o homem morra de uma morte nunca esclarecível. talvez.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

euskadi ta askatasuna

este lema, que se traduz por "nação basca e liberdade", é a descodificação da sigla ETA, fácil sinónimo de barbaridade e falta de respeito pela vida humana.
quem já passou por Euskadi dá-se rapidamente conta de que o espírito de independência e orgulho nacional está lá, em cada esquina. os símbolos do Governo e das estruturas administrativas e políticas saltam à vista. dizem-nos eles, os bascos, com indisfarçável orgulho, que não pagam impostos a Madrid, falam-nos de Gernika como um símbolo de auto-governo que vem das profundezas do tempo. já quase não se entende por que razão os bascos ainda vêm no mapa como cidadãos de Espanha.
o lehendakari, "o primeiro de todos", o presidente basco, apenas espera o momento oportuno para levar a cabo um referendo de independência, que, compreende-se, é considerado "ilegal" pelos unionistas de Madrid. como se isso contasse muito para quem quer ser independente.
percebe-se melhor por que tanto o Governo basco como a sua erzainza ("polícia". à letra: guardadores de rebanhos, pastores de cabras e ovelhas ) fazem vista grossa às atividades da ETA e simultaneamente a desprezam.
a ETA passou à História, é desnecessária, é mesmo até um estorvo. porque a independência já é possível sem ela.
além do mais, a ETA, como organização marxista-leninista, dificilmente terá lugar num futuro Governo Nacional Basco, que, certamente, lutará por um lugar de paridade no concerto das nações livres e democráticas. e da União Europeia, obviamente.
mas, ao mesmo tempo, a atividade da ETA tem o dramatismo e o poder aterrador suficiente para manter Madrid ciente de que tem um problema a resolver: a independência de Euskadi e, com ela, a eliminação definitiva da ETA e do seu efeito de papão. a verdade é que nenhuma independência se fez sem sangue, nenhum panteão de heróis e patriotas se fez sem a perda de vidas. mas a história da ETA, neste momento, já constitui um estorvo aos independentistas de direita, do centro e da esquerda que jogam o jogo democrático.
se a ETA ainda mexe, a culpa é de quem não entende que Euskadi (o País Basco) já não tem travão possível como nação independente. e de quem faz alarde de vitórias antecipadas que, afinal, não são vitórias nem sequer empates.
venha daí o referendo basco e o fim da ETA.

subsidiar os banqueiros com o dinheiro do povo

o pensamento de uma certa esquerda tem destas coisas. enchem outdoors por aí clamando contra a ajuda do Estado à banca e aos banqueiros com o "dinheiro do povo". mas é pena que o pensamento dessa gente seja tão facioso e vesgo a ponto de as fazer dizer coisas sem sentido. o aval do Estado aos bancos em dificuldade destina-se a salvar os depósitos e as mil e uma aplicações e fundos, impingidos pelos banqueiros às pessoas, ou seja, ao tal "povo", e que agora estão em risco sério de não terem nem o retorno pretendido ou sequer retorno nenhum. se fôssemos pela conversa desta gente, isto é, se o Estado chutasse para canto ou assobiasse para o lado, era o que acontecia a todos os portugueses e portuguesas que confiaram as suas poupanças aos bancos.
os banqueiros? esses não precisam do Estado para nada, já ganharam tudo o que tinham a ganhar ou a roubar, como se diz no prêt-à-penser. e com a nacionalização saem de cena, largam os bancos, mudam de azimute. alguns irão mesmo passar uns anos de férias compulsivas numa residência protegida.
o Estado faz sempre um bom negócio: se a coisa corre bem, não gasta um tostão, pois é disso mesmo que se trata "dar o aval"; se a coisa corre mal, nacionaliza o banco, compra-o barato ou de graça, safa o banco e vende-o caro, pois tamém é disso que se trata quando a coisa passa a ter de intervir o avalista . onde é que está o problema?
e não é esta gente que vai nacionalizar este mundo e o outro se algum dia chegar ao poder, como em 1974-75? onde é que está a coerência?
"nacionalizado, nosso", lembram-se?

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

a descida dos preços e a nova Idade Média

uma das criações mais originais da presente crise económica e financeira é o chamado "risco de deflação". estamos habituados a ouvir falar de inflação, mas ouvir falar de deflação é a primeira vez.
entende-se por isso uma descida global dos preços, sinal de grande baixa do poder de compra, redução acentuada do consumo, estrangulamento notório da produção. em consequência disso, aumento assustador do desemprego, agravamento da pobreza, baixa ainda maior do poder de compra, baixa da procura, redução de preços e assim por diante até ao encerramento geral.
sabemos como os países mais ricos, independentemente do valor relativo da sua moeda, tinham até agora um índice de preços mais elevado, enquanto os países pobres tinham um índice de preços muito mais baixo. isso deve-se a que os ricos consumiam mais que os pobres, logo os preços eram tanto mais altos quanto mais rico era o país.
a redução geral dos preços, a verificar-se, vai significar que a economia está muito frágil, como um doente a caminho da fase terminal cujo sintoma mais visível é o emagrecimento progressivo.
num cenário deflacionista podemos ter bastante dinheiro sem que consigamos gastá-lo, apesar da baixa geral de preços, pela simples razão de não haver suficiente produção de bens e a maioria das pessoas não ter possibilidades financeiras nem para adquirir o pouco que se produz.
imaginemos a situação. temos um carro, ou dois, ou mesmo três. enquanto não há avarias, vai tudo bem. os combustíveis descem, os carros andam. por menos dinheiro, até. mas quando acontece uma avaria é necessário que haja quem a repare e que as peças existam em stock. como a economia está em deflação, as empresas fecham e o desemprego aumenta em flecha. as oficinas fecham, poucas são as que estão abertas e poucas das que estão abertas têm as peças necessárias. os carros ficam na garagem. apodrecem. e voltaremos a andar a pé e de burro como os pais dos nossos pais.
para mim, os criminosos que precipitaram esta crise não são os autores da crise. ela faz parte intrínseca do sistema capitalista global. os criminosos apenas a fizeram chegar mais cedo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

barack hussein obama II

um homem de grande inteligência, liderança e carisma pessoal.
uma campanha eleitoral sem mácula, positiva, serena.

uma promessa de mudança num país estagnado.


uma rede de pontes que começa na ponte racial: nem preto nem branco, Obama é mestiço, mulato, as duas coisas: branco e preto. a primeira e mais importante das pontes que faziam falta na América. e, por que não, em todo o mundo.

que os deuses lhe sejam favoráveis.

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ps: o estranho comportamento de Berlusconi, comentando em tom jocoso que o presidente-eleito dos Estados Unidos tem um ar "jovem, bonito e muito bronzeado", não me parece uma boutade inocente e gratuita de um primeiro ministro provinciano à procura de notoriedade. mais me cheira a algo de sinistro, um recado, vindo das profundezas de uma Itália que se ramifica pelo que de mais sombrio tem a América. a ver vamos.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

os centros cerebrais

a psiquiatria anda maravilhada com os centros cerebrais.
por ser uma lógica de resolução controlável e quantificável de problemas, ainda que possa não ser a única ou sequer a melhor, a lógica dos fármacos e a necessidade de explicar como eles atuam faz com que os psiquiatras acreditem que, por um fármaco atuar num ou mais centros cerebrais, a causa da doença esteja no cérebro.
sendo o cérebro nada mais que uma poderosa central de relais de informação, onde são processados inputs e direcionados outputs, ainda por cima com inúmeros processos de retroalimentação locais, regionais e centrais, é difícil ser-se tão perentório quando se confunde a origem de uma informação com a central que é suposto processá-la.
imaginemos que num bairro de uma grande cidade ocorre uma catástrofe, um incêndio, uma inundação, um tumulto popular. da catástrofe, do incêndio, do tumulto, acorrem à central inúmeros pedidos de socorro, que abafam todas as informações que provêm de outros bairros. aí, o que faria o alcaide da cidade, se fosse um psiquiatra assim fundamentado? pois, simplesmente, mandava abafar o ruído que provinha do bairro, do incêndio, da inundação ou do tumulto. não resolveria o problema, silenciava-o. apenasmente.
a origem do problema seria, então e apenas, uma avaria da central. melhor: dos circuitos da central aonde acorriam os pedidos de socorro.
porque o problema do bairro incendiado, inundado ou em tumulto popular simplesmente nem teria interesse nenhum.

domingo, 5 de outubro de 2008

e=mc2

a equação pode não ser definitiva, pode faltar-lhe uma constante desconhecida em situações extremas, pode ser apenas uma aproximação, mas é palavra de sábio.
diz-nos que matéria e energia são dois pólos de uma realidade comum, regida por uma relação matemática. a energia "arrefecida" coalha em massa, da massa "aquecida" emana energia.
aqui não há princípio nem fim, não há momento fundador, a criação não existe. há só uma eternidade irrequieta, bulindo-se a si mesma, composta de mudança, tomando sempre novas qualidades.
só para nós, que estamos no centro observável da mudança que nos é dado ver, existe fim e princípio e princípio e fim.
nenhum big-bang, nenhuma palavra de deus é mais do que um dos inúmeros "princípios" e "fins" de uma eternidade buliçosa, que procuramos conter nas jaulas de que é feita a nossa linguagem.
passamos a vida a dizer o mesmo com palavras diferentes, cometendo sempre os mesmos erros lógicos: "não pode haver nada sem uma causa, logo a causa última de todas as coisas é uma causa sem causa, o big-bang, ou deus, ou a emanação de um mega-universo de onde é parido o universo que nos é dado conhecer". mas como explicar, então, o big-bang, deus, ou o mega-universo de onde deriva o universo conhecido? que significam as palavras com que dizemos as coisas?
e o engraçado disto tudo é haver leis que existem simplesmente por existir matéria e energia numa proporção matemática.
não há princípio nem fim, só há eternidade. não há deus que não seja haver tudo o que existe com as leis que tem.

é para deus que não é deus,
é para tudo o que existe com as leis que tem,
que dirijo o meu deslumbramento, a minha adoração
e o meu respeito,
ó natureza-mãe!


sexta-feira, 3 de outubro de 2008

o descasamento

a solene comitiva dirige-se ao altar. pola porta da igreja entram os consortes, seguidos dos meninos dos anéis, padrinhos demissionários, familiares e vasta cópia de amigos. chega o padre, o sacristão e os acólitos. começa a cerimónia. no coração dos rituais, o clérigo dirige-se aos consortes.

primeiro a ele:
- pensou bem no ato que vai realizar. é de sua própria e livre vontade que reconhece por sua ex-mulher a sua esposa aqui presente? e que ela possa fazer da vida dela aquilo que lhe der na real gana?
- sim, padre - respondeu o home.
seguidamente à mulher:
- pensou bem no ato que vai realizar. é de sua própria e livre vontade que reconhece por seu ex-marido o seu home aqui presente? e que ele possa fazer da vida dele aquilo que lhe der na real gana?
- sim, padre - respondeu a mulher.
- sendo assim, e sendo essa a vossa firme e livre vontade, que Deus separe o que Deus uniu e que nenhum homem ou mulher interfira com a vontade de Deus. ite, missa est.
do mesmo jeito que chegou, a comitiva organizada abandona o templo. à porta larga, sai à direita o ex-consorte, a menina do anel, os ex-padrinhos, familiares e amigos. à esquerda sai a ex-casada, o menino do anel, os ex-padrinhos, familiares e amigos.
cada uma das comitivas segue a caminho da respetiva boda. comem e bebem, cantam e dançam até de madrugada. a alegria transborda e inunda os corações. enfim livres!
no dia seguinte, passada a ressaca, tem lugar a festa de despedida de casados.
os filhos do ex-casal transbordam de felicidade: pela primeira vez, assistem a uma cerimónia de seus pais.
termina aqui um conto de fadas. e aqui começa uma outra estória.

os pais, esses, cada qual com sua nova companhia, planeiam, criativamente, um novo casamento.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

casamento?

eles são do contra, estão deliberadamente contra os hábitos da casa. não querem nada com os que ainda gostam de brincar à moda antiga, homes com mulheres, meninos com meninas. ostensivamente, chamam-se gays, palavra inglesa antiquada que quer dizer "alegre". como diríamos nós com arcaísmo equivalente: "ledos". como se nós, os que não somos gays, fôssemos "tristes", ou como se eles fossem mais "ledos" do que nós.
não querem nada conosco, mas provocam-nos. passam a vida a chamar-nos homofóbicos, pensando, talvez, que a gente não tenha mais com que se ocupar senão com eles e as suas assumidices.
por mim, passo à frente. não tenho nada com eles, nem a favor nem contra. se nos deixassem em paz com os seus complexos de marginalidade nem dávamos por eles.
pois bem, o casamento, essa instituição em decadência, essa cerimónia moribunda, essa bandeira decadente da heterossexualidade, a um tempo património, procriação e educação, fundamento e estatuto da família, não exerce já nenhuma atração especial. cuido que, verdadeiramente nem aos saudosistas.
eles, os gays, querem agora apoderar-se dele.
por mim fiquem com ele e sejam muito felizes e tenham muitos meninos, se a natureza deixar. mas se agora os gays querem casar, e com isso roubar-nos o que já nom presta, nós, os que nom somos gays, é que temos de inventar cousa melhor.


quarta-feira, 1 de outubro de 2008

maria

Maria era uma negra que vivia no hospício. ninguém sabia muito bem o que fazia a Maria naquele manicómio. consta que a sua doença era um mal-entendido cultural, mais nada. mas enfim, estava lá.
certo dia, dou com Maria a falar sozinha.
- Maria, estás a falar sozinha?... - digo eu, com alguma ternura
- Maria não fala sozinha: Maria pensa, Maria fala... e tu? tu não escreve sozinho? pensa, escreve. é a mesma coisa.

e a verdade é que eu acho que a Maria tinha razão.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

outono

o outono já chegou há muito tempo,
e ainda há quinze dias era verão.
caiem-me as folhas.

estou menos vivo que morto,
é tudo lento e difícil.
caiem-me as folhas.

se ao menos sobre as folhas
que me caiem
o meu fruto caísse
e dele eu renascesse.

bem sei.
é sempre assim
que vejo a vida
a cada chegada do outono:
mortiça, dormente, decadente,
como uma estrela cadente
esmorecida.




sábado, 20 de setembro de 2008

o príncipe

-papá, quando eu for grande, vou querer ter um namorado, mas quero que ele seja um rapaz bonito. só quero rapazes bonitos. e sou eu que escolho...
- acho que fazes muito bem, filhota.
- e onde é que eu tenho de ir?
- não vais ter de ir a nenhum lado especial. eles aparecem...
- aparecem? e o que é que eles dizem?...
- cada um diz uma coisa diferente. tu vais achar graça a uns e a outros não. não te preocupes, quando isso acontecer é mais fácil.
- o príncipe vem sempre no fim da estória, não vem?
- umas vezes vem, outras não sei. mas a nossa vida tem muitas estórias. em alguma delas há-de vir o príncipe.

(diálogo com a minha filha, de 4 anos)

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a ajuda


às vezes, a ajuda toma caminhos imprevistos.
recordo muitas vezes o bugueiro Pedro, que me levava a passear nas dunas de Cumbuco. "com emoção, ou sem emoção?" emocionante sempre! fizemos amizade bem cedo. quando podia, quando o búgui não tinha clientes, o Pedro aparecia: "doutô, quer vir em Fortaleza?" outras vezes: "doutô, quer dar um passeiinho de búgui - não paga nada - quer ir comigo visitar um amigo meu, na mata?" e eu ia, é claro. eu não resisto às tentações de verdade. e lá íamos nós, sempre a falar, sempre a ouvir as estórias da aldeia de Caucaia, onde o Pedro tinha sua casa, mulher, filhos, galinhas caipiras, cachorros e vizinhos. uma aldeia que merecia bem o seu nome nativo: "Caucaia": "clareira na mata". uma mata negra e muda depois do pôr do sol.
até que notei, dias depois, que o Pedro andava encabulado, tristonho, cara de sofrido. não era o mesmo Pedro. aí, eu perguntei: "- Pedro, o que é que se passa com você?"
"- sabe, doutô, eu todas as noites tenho que ir no aeroporto pegar o pessoal que chega no vôo das 4 da manhã. quando eu vou prá cama, eu tenho medo de não acordar na hora e tem noites que nem durmo".
senti uma ternura imensa pelo nativo Pedro. e disse: "Pedro, fique tranquilo, eu vou resolver seu problema!"
no dia que pude, dei um pulo em Fortaleza. numa loja de fotografia eu vi um despertador lindo, moderno, de pilhas, aquela tentação. pensei: vou oferecer ao Pedro. vai ficar contente. é caro, é bonito, ele não vai esquecer mais esse momento. e se bem o pensei melhor o fiz. apareci em Cumbuco com um embrulho bem bonito. o Pedro abriu. ficou radiante, feliz, não sabia muito bem onde esconder a sua gratidão. e eu achei barato os 20 euros para tão encantadora alegria.
no dia seguinte o Pedro andava radiante, solto, dormido, feliz.
mas os dias passaram e o Pedro fechou de novo. andava esquivo, fugia do contacto, cumprimentava e sumia. pensei que andasse cheio de trabalho e solicitação. mas esse estranho comportamento persistia. até que decidi tirar a limpo a situação. "Pedro, você anda meio fugido da gente, quer ver que o despertador não funciona mais?.." e respondeu, como se desse um pulo: "funciona, sim, doutô, funciona muito bem. eu agora durmo bem e acordo na hora..."
dei uma resposta de silêncio incrédulo. o Pedro entendeu na minha cara e explicou o que faltava explicar:
"- só tem um problema: quando eu acordo, todo o mundo acorda!"


terça-feira, 16 de setembro de 2008

o mago

certo dia tirei-me de clichés e preconceitos e fui visitar a casa-museu de um feiticeiro reformado, ali para as bandas de Lugo. o home acolheu-nos de boa mente e logo começou o foguetório das suas artes. que tinha 300 anos de vida, que era capaz de voar, enfim. enquanto ele exibia as suas gabanças, acompanhadas de vasta coleção de fotos e artigos de jornais, eu passava os olhos pelo estendal de ervas, patas de insetos e bichos repelentes, mezinhas, poções, pós, potes e almofarizes, receitas e esconjuros, livros da melhor gente da cultura e das artes: um museu a sério.
e eu bebia na fonte o que a bica botava.
vendo-me interessado e curioso, o home mandou-me uma estocada e quase me atira ao tapete:
- sabes de onde vem o meu poder?
fiquei sem resposta, ante tantas hipóteses que me passavam pola mente. após um interlúdio já estudado, respondeu à própria pergunta rapando do boné que trazia na cabeça e pondo-me a testa dele na frente dos meus olhos:

- daqui!
e mostra um par de corninhos, um de cada lado da testa, quase simétricos, que trazia recatados no seu boné.

a Bíblia passou-se-me de repente pelos olhos de dentro: tamém a Moisés o pintam com uns cornos assim!

aí, passei ao contra-ataque:

- Manolo, cando eu entrei ali pola porta vi cousas de Deus ao lado direito e cousas do Diabo na vitrine da esquerda...

- ...e sabes porquê? - perguntou triunfante.
- ora, respondi eu, a porta da tua casa é como entrar dentro da gente. Deus e o Diabo fazem parte da nossa natureza!

a reação do home foi de incredulidade. olhou pra mim de cima abaixo e perguntou:
- tu que fazes? és vidente? filósofo?
- gosto de entender as pessoas, só isso.

quem ia comigo já não aturava mais a conversa e deu coa língua nos dentes:
- ele é psiquiatra!

fiz uma cara de zangado, mas o mal estava feito.

a conversa mudou de figura. o impressionante feiticeiro entrou em confissão. contou como tudo começara, ainda jovem. cousas difíceis de entender se tinham passado co ele. chegavam-lhe de outros mundos vozes e influências. andara polos médicos, sem que lhe dessem solução às dúvidas, incertezas, enigmas e temores. começou a frequentar congressos de medicina, de literatura e de cultura e arte, procurando respostas. tornou-se amigo de figuras de renome e influência.
a fama dos seus contactos com experiências além do real fez que o procurassem cada vez mais e de mais longe. a resposta encontrou-a ajudando os outros.

hoje é ele mesmo um museu na sua terra.

sábado, 13 de setembro de 2008

pagar a dobrar

esta coisa de ser contribuinte a 40% chateia-me um bocado. não que eu não queira contribuir, sou até um contribuinte frequentador e assíduo. o que sucede é que não ganho nada com isso, só perco.
vou levar a pequena à escola, e o que sucede: há um preço para cada escalão de IRS. e, obviamente, eu que já paguei mais impostos que os outros, tenho que pagar mais pelo mesmo serviço.
vou ao hospital curar um panarício, levar uns pontos no sobrolho, investigar de onde vem a minha tosse, e o que sucede: há uma taxa moderadora para mim, que contribuo a 40%, e um cidadão que contribua a 10%, ou menos, não paga taxa nenhuma e ainda se acha com direitos especiais porque "desconta".
e poderia multiplicar os exemplos desta história do preço dos serviços, mas não me apetece.
feita a tal distribuição corretora dos rendimentos proporcionada pelo fisco, não será lógico que o preço dos serviços seja igual no fim? ou então, já que tenho de pagar mais pelo serviço, que este me seja prestado com um plus de qualidade? pois a verdade é que não só não tenho plus nenhum como ainda me tratam abaixo de cão.

imaginem que tínhamos de pagar impostos para sustentar uma rede de supermercados públicos.
lá vinha o mesmo raciocínio: aquele paga mais impostos, logo tem que levar a carne, os ovos, o peixe e a hortaliça pelo escalão do IRS que paga.

não seria melhor mandar os impostos às urtigas? já esteve mais longe. a inveja aos "altos rendimentos" alastra. é proibido ser rico ou viver desafogado. a ideologia pobretana impera.
impõem um teto às reformas. descontámos para 100, dão-nos 50.
o problema é que se acabarem os "ricos" acaba a receita dos impostos. e ficam mais pobres os que já são e os que ainda não são.

e até que era bem feita.





quarta-feira, 10 de setembro de 2008

abaixo de cão

não se lembre o cidadão de estar doente e precisar de entrar num hospital português para consulta, urgência ou internamento. tem de imediato início um demolidor processo de despersonalização. habituado a ser tratado pelo título ou, vá lá, pelo nome de família, passa a ser tratado pelo primeiro nome, na melhor das hipóteses com "senhor" ou "senhora" atrás. o professor catedrático passa a ser o "senhor José", o médico o "senhor João", o advogado o "senhor Francisco", e assim por diante. uma vez internado, recusam-lhe o uso do pijama pessoal, tendo de conformar-se a usar uma espécie de bata em cima do pêlo. não pode servir-se do telemóvel nem do computador portátil. e em tudo o resto a pessoa é reduzida à sua máxima insignificância - o nível zero.
eu não concordo.
dizem que isso é feito em nome da "igualdade". ora, eu essa igualdade não a aceito. em primeiro lugar, porque, sendo todos iguais em direitos, deveres e oportunidades, somos também todos diferentes uns dos outros - e a isso se chama personalidade, que consiste em cada um ser o que é e aquilo que faz e constrói; em segundo lugar, porque essa igualdade é obtida à custa de uns pagarem mais impostos e outros menos, não cabendo a quem paga menos tratar dessa maneira os que pagam mais; em terceiro lugar, porque a igualdade tem que ser afinada por cima e não por baixo - é preciso que os que não são doutores, nem engenheiros, nem professores-doutores, nem nada disso, sejam tratados pela bitola de cima, nunca os mais diferenciados serem tratados pela bitola de baixo.
e nem só os doutores, engenheiros, advogados e professores se podem queixar. o cidadão comum, habituado a que lhe chamem "Rodrigues", "Pereira", "Sampaio", sei lá, tem de conformar-se a que o tratem por José, Luís, António, Sebastião ou Francisco, Aurora, Maria ou Edviges. e lá por não ser "doutor" não quer dizer que não esteja habituado a padrões de vida, tratamento pessoal e maneiras muito acima da bitola hospitalar. e que não pague altíssimos impostos para que essa gentinha, que assim os trata, possa ter emprego.
mas o que a mim me espanta mais, no meio da nossa cultura hospitalar, é que qualquer funcionário com um desses cursos pseudo-superiores logo exija que o tratem por "doutor" - a todo o mundo e aos utentes a quem trata por senhor José e assim.

tenho muita pena, mas dessa esquerdice eu não sofro.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

descobrir a pólvora

todos os dias somos bombardeados com a descoberta de um novo gene. agora foi a vez do gene da fidelidade conjugal masculina. apetece-me perguntar: - cadê o gene da fidelidade conjugal feminina? estudaram a coisa no rato, mas penso que devem, de seguida e já, fazer o mesmo na rata. o vocabulário vernáculo está cheio de cornos e cornudos, epíteto que se dirige ao homem atingido pela infidelidade feminina. o inverso não tem designação vernácula conhecida, talvez por força de uma cultura que o feminismo ainda não conseguiu erradicar.
além do mais, a coisa tem o seu ar démodé, pois nem sequer contempla a infidelidade gay e lésbica, que, segundo se queixam, é muito pior e mais dramática. e, já agora, tamém não trata da conhecida infidelidade humana a todos os compromissos em geral.
mas, enfim, a estonteante descoberta sueco-americana é uma forma de começar a pesquisa de tão momentoso tema.
o que assusta não é isso. a infidelidade é própria do ser humano, da sua forma forma de ser e de estar, desde o princípio dos tempos. faz parte de uma predestinação biológica que o homem tem tentado corrigir com educação, regras e leis, usos e costumes, que tornam mais humana a sociedade e permitem a tradição, a civilização e a cultura.
o que assusta neste contínuo descobrir o que todos já sabemos é a tentativa de negar a sociedade, a civilização e a cultura.
mas, afinal de contas, o que significa ser genético? significa, simplesmente, ser coisa da massa de que somos feitos. nós somos assim. mas somos mais do que isso. aspiramos à melhoria de nós mesmos. criamos tradição, usos e costumes, civilização e cultura, que fazem de nós algo mais que ratos da pradaria.
se a genética veio para explicar as nossas imperfeições, muito bem. mas vem descobrir o que já está descoberto. se veio para nos desculpar, é preciso cuidado: pode explicar por que razão matamos, roubamos e somos tão cruéis e corruptos.
mas se a genética veio para mudar o homem, a coisa fia fino: mudam-nos os genes, como quem muda os chipes? era esse o sonho alemão dos anos 30.
foram as nossas imperfeições a razão de ser de civilizações e da própria história. se nos tornarem perfeitos morrem as leis, a arte e a política. morre a humanidade, porque deixa de haver o que dizer sobre ela. e tornamo-nos robôs sem alma e sem alento.

sábado, 6 de setembro de 2008

o sistema imunitário

estamos habituados a conceber o nosso sistema imunitário como um ultrassofisticado dispositivo bélico, destinado a defender-nos de todos e quaisquer possíveis invasores. preocupamo-nos mais em descrever cada uma das células, humores, artimanhas e armadilhas de que se compõe, e cada uma das guerras e batalhas, vitórias e derrotas, e até os casos em que parece um estorvo, do que em compreender o próprio sistema imunitário e o seu significado.
antes de mais, o sistema imunitário tem uma função identitária, pelo que, se assim se pode dizer em biologia, a sua razão de ser é cultural. estabelece a diferenciação entre "eu" e "não eu" e as relações possíveis entre ser e estar no mundo.
numa metáfora antropológica, imaginemos uma tribo, uma comunidade humana, com a sua história, língua, costumes, cultura e antepassados comuns. a sua presença no meio tem como princípio elementar a preservação da identidade, simultaneamente ser e estar, sem o que a comunidade já não é "aquela tribo", "aquela comunidade", mas outra coisa ou mesmo coisa nenhuma.
confrontada com a presença do estranho, a tribo, para preservar a sua identidade, optará, conforme o caso, por combatê-lo ou aceitá-lo, integrando-o. a consequência do combate pode não ser a vitória. se derrotada, a tribo pode ser destruída fisicamente ou pode ser integrada noutra, perdendo a sua identidade.
formas intermédias são os tratados de cooperação ou complementaridade, que fazem com que comunidades estranhas decidam cada qual contribuir para sanar as carências da outra. no caso da imunidade, a possibilidade de floras estranhas habitarem o organismo e tornarem-se imprescindíveis à sobrevivência deste, como é o caso da flora intestinal. ou decidirem coabitar pacificamente, como no caso da flora da boca.
mas não só no estranho reside o problema. o inimigo pode vir de dentro. uma fação da tribo pode entrar em conflito com a tribo restante e desencadear uma luta pelo poder, que, em geral, acaba no prejuizo de toda a comunidade. no caso, o sistema imunitário entra em luta interna e o resultado são doenças auto-imunes, habitualmente graves.
finalmente, a tribo pode ser neutralizada por uma força política, administrativa e militar superior, que a obriga a aceitar a convivência forçada com tribos vizinhas ou estranhas. é o caso dos transplantes, em que o arsenal da medicina neutraliza o sistema de reconhecimento da identidade, forçando-o a aceitar órgãos estranhos.
o sistema imunitário é, pois, muito mais que um exército defensivo: é uma identidade e uma cultura, um ser e um estar no mundo da biologia.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

professores e enfermeiros

por força da sua visibilidade social, estes dois grupos profissionais foram ganhando um tique que mais nenhum grupo profissional tem: o tique do direito ao pleno emprego. mais: ainda que todos os professores e todos os enfermeiros tivessem o seu emprego garantido, ainda assim haveria, segundo eles, uma escandalosa carência de "vagas" nos respetivos ministérios.
os enfermeiros, quero dizer, os seus prestimosos sindicatos, sentem-se no direito de dizer ao Estado quantos enfermeiros são precisos. e os professores, digo, os seus sindicatos, fazem a conta espantosa de revelar como "professores desempregados" os candidatos a professores que o Estado não precisou de admitir. mas nem uns nem outros tenhem a coragem de exigir o mesmo aos empregadores privados da respetiva área.
seria cómico, se não revelasse uma inaceitável arrogância e o desprezo pelos verdadeiros desempregados: advogados, engenheiros, licenciados em letras e ciências, psicólogos, antropólogos, etc., que não têm o Estado como seu principal empregador. que quando conseguem emprego não podem ameaçar com greves nem manifes. não mostram respeito por doutorados, pós doutorados e bolseiros a quem o Estado não assegura um emprego digno, trazendo-os presos por bolsas e pela implícita ameaça de estas não lhes serem renovadas. não têm respeito por licenciados e mais que fazem trabalhos de caixa em supermercados e lojas de centros comerciais.
e, é claro, não têm qualquer respeito por todos aqueles que não sendo bacharéis, nem licenciados nem nada dessas coisas, todos os dias perdem o emprego, ou simplesmente não o ganham, no incerto e volúvel mercado do trabalho.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

a descomunicação

o senhor presidente fez anunciar ao país uma comunicação importante. apesar do mistério que rodeou a coisa, não era de muita ciência adivinhar o conteúdo do discurso: as autonomias regionais e, sobretudo, o subreptício e disfarçado caso dos Açores.
ao contrário dos teleboçais de serviço, acho que o assunto é sério, importante e, se calhar, assustador. duas regiões de Portugal têm um estatuto à parte, são mais regiões que as outras, têm mais poder que as outras, aqui dispensam a bandeira, ali fecham a porta ao presidente, acolá rodeiam os poderes nacionais de uma teia de rodriguinhos e buroestratégias que consistem em fazer de conta, por meios sinais, que não fazem bem parte do todo, são outra coisa. elas têm uma história comum, falam a mesma língua, comem do mesmo orçamento, mas não são como nós, são outra coisa. são mais portugueses que os outros.
no caso da Madeira, que optou por um estilo folclórico, bonacheirão e paroquial, a coisa, de tão exótica, já se tornou banal. não receber o presidente nacional na assembleia legislativa regional é apenas mais do mesmo. venha o que vier de lá, já não assusta ninguém. se de lá vier a novidade de que na Madeira já só há madeirenses, a nossa primeira reação no Continente vai ser rir a bom rir da última piada. mas os Açores, que têm o lema que devagar devagarinho se vai à Ribeira Grande, já tinham no papo um estatuto que certos países não têm. e aí o presidente assustou-se e quis transmitir o susto aos portugueses.
mas enredou-se num discurso de pequenos poderes e de princípios que mais cheiraram a problema da pessoa ou do cargo do que a um grave problema nacional. em lugar de assustar o país como devia, o senhor presidente pôs o país a encolher os ombros e a dizer ora pôrra.
é claro que os políticos sabem de que perigos fala o senhor presidente. todos os que fizeram parte da orgia da votação unânime do estatuto dos Açores se apressaram a dizer que iriam agora, sobriamente, repensar a coisa.
por mim, não concordo. acho muito bem que se defenda a independência total das regiões. já agora de todas, para não ficarem umas a chorar e outras a rir.
pois é, em Lisboa não se fala claro. não se trata os bois pelos nomes. e fica assim uma coisa que só percebe quem quer.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

o castigo exemplar

ouve-se muito falar de castigo exemplar. ora, em geral, as leis preveem os atos considerados crime e a pena julgada adequada e suficiente. e se os não preveem, faça-se lei que os tipifique e castigo que os pague. ponto final. mas volta e meia regressa o castigo exemplar. é um momento politicamente fraco, é uma debilidade especial deste ou daquele governo, é a mania de um político, é uma ameaça social inesperada, sei lá, o certo é que o castigo exemplar vem em certos momentos e não noutros.
não é matéria nova. já os antigos impérios e as antigas monarquias usavam o castigo exemplar como afirmação do seu poder e da sua força. o pobre infeliz que cometesse, ou fosse tido por cometer, um ato politica ou socialmente inoportuno sujeitava-se a pagar pelo ato supostamente cometido e, acima de tudo, pela possibilidade de outros cometerem um ato semelhante.
resumindo: o castigo exemplar não é um castigo, mas sim um ato de poder exemplar. não é de justiça que se trata, pois que a justiça trata por igual o que é igual. o castigo exemplar é uma discriminação, um abuso, uma injustiça exemplar.
fazer a pena maior que o ato, para que o ato não se torne exemplo, não é justiça. é poder, é arbitrariedade, é injustiça e medo.

já o dizia Cícero, "é preciso ter cuidado para que a pena não seja maior do que o crime".



quarta-feira, 18 de junho de 2008

os saberes do nosso tempo

já não sou um fresco exemplar de juventude. os anos que tenho, se ninguém mos dá tamém ninguém mos tira. certo é que dou comigo, volta e meia, a prevenir as ideias com o estribilho: "no meu tempo..."
com isso, não quero dizer que este tempo de agora não seja meu, quero talvez dizer que há um tempo meu que já não é da gente mais de agora.

isto para me pasmar com a grotesca ignorância da gente de hoje. sabem quase tudo o que é técnica, quase tudo o que é ciência, ou lá como lhe chamam, mas não sabem rigorosamente de mais nada. de história, nada. de geografia, nada. de filosofia, menos. de literatura, népias. pensamento próprio, nem pensar. quase não posso falar com eles sem me sentir uma fastidiosa enciclopédia de saberes inúteis. uma espécie de egípcio embalsamado do tempo dos faraós.
o problema é que isto não é inofensivo nem benéfico. "no meu tempo", um médico, por exemplo, era um filósofo, um sábio, muitas vezes um escritor, sempre alguém que via no enfermo o "outro", um ser humano com uma história, um significado, uma cultura, uma família, um linguajar, uma originalidade irrepetível, uma graça, um refrão, uma modinha, um dito, uma reflexão desconhecida, uma religião, sei lá. aprendiz do ser, das almas e das dores, o médico era um "doutor", à letra: "aquele que ensina".
hoje, não há médico que saiba de onde vem a palavra "medicina" ou a palavra "doutor". e com isso escusa ele de saber que já não sabe que chegue para ensinar ninguém e, melhor ainda, escusa de se gabar de ser um mago da Média, região de onde vinham os sábios doutores nas artes mágicas de curar todos os males.
hoje, um médico é uma pessoa vulgar, que a mais que os outros tem apenas aquele chipe com o que de mais "relevante" existe para saber no ramo tecnológico das doenças. doente? qual doente? qual pessoa, qual terra, qual região, qual história, qual significado pessoal, qual criatividade, qual originalidade? é apenas um amontoado de sintomas e de resultados de análises e exames técnicos, que os médicos de agora são ensinados a reunir e organizar sem nada que ver com o destino humano.
o doente deixou de ser uma pessoa. hoje, é uma máquina avariada ou com defeito de fabrico que é preciso compor ou reparar. e da qual já se fala até em deitar fora assim que deixe de ter préstimo.
sempre que me lembro de Abel Salazar, sinto um calafrio imenso: "o médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe."
tenhem toda a razão aqueles que já nem querem tratar os médicos por "doutor". um doutor que sabe tão nada como é que pode ensinar seja quem for?
e falo dos médicos porque são o escândalo mais inesperado e doloroso. da sabedoria pessoal dos técnicos das outras artes e manhas nem vale a pena falar.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

o presidente da raça

além dos problemas que já temos e nos sobram, ganhámos outro: o presidente já não é de todos os portugueses, daqueles que votaram nele e daqueles que têm a obrigação democrática de o gramar: agora, é só daqueles portugueses que têm raça. não sei que raça, porque o senhor presidente esqueceu-se de o dizer. de jeito que ficámos todos na dúvida: será que eu sou da raça ou deixei de ser português?
é certo que eu não entendo por que carga de água o dia de Portugal tenha que ser o dia de Camões. estou farto de Camões. é um poeta que eu conheço, não porque tenha gostado, mas porque me obrigaram a encorná-lo, a dividir-lhe as orações, a traduzi-lo para Português vulgar. estou cansado de Camões, é deprimente falar de Camões, falar das Descobertas, falar do século XVI. parece que morremos como Povo no Séc. XVI!
e se o dia de Portugal fosse hoje, 13 de Junho, data do nascimento de Fernando Pessoa? afinal, o poeta que disse: "a minha Pátria é a Língua Portuguesa".

segunda-feira, 9 de junho de 2008

change: can we believe in?

faz este ano, respetivamente, 40 e 45 anos que foram assassinados Robert e John F. Kennedy. traziam com eles a promessa de mudança. um morreu na corrida, o outro já no seu posto de Presidente americano.

uma América quer mudar, anseia que a oiçam, grita que a vejam.
mas uma outra, subterrânea, oculta, poderosa, impede que o sistema seja alterado por dentro.
dos três candidatos atuais à Presidência, um faz da mudança o lema e a bandeira. o outro é um velho surdo físico e mental. e finalmente a outra, se nomeada vice-presidente, pode bem vir a ser a primeira mulher Presidente dos Estados Unidos da América do Norte.
pois. é que eu não sei se as armas silenciosas e cobardes se calaram para sempre. se a América amadureceu o suficiente para tamanha mudança.
mesmo que Obama ganhe folgadamente os votos da América. da que deseja mudar, bem entendido.
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nota: é claro que falhei rotundamente na previsão do vice-presidente. mas será que falhei no resto da profecia?
imagem: www.javno.com

quinta-feira, 29 de maio de 2008

petição

a todos os falantes da Língua, europeus, africanos, americanos e asiáticos:

o Acordo Ortográfico agora ratificado prevê um inexplicável prazo de 6 anos para a sua efetiva implementação prática generalizada.
como muitos outros apoiantes incondicionais do AO, sou de opinião de que não há mais tempo a perder, nem paciência para mais entraves. desse modo, subscrevi, em 154º lugar, a seguinte Petição, do Movimento Internacional Lusófono (MIL).



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nota: não peço opinião sobre o AO, porque é assunto encerrado.
peço, apenas, que assinem a Petição se concordarem com ela.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Portugal na Commonwealth

em Portugal, a partir do próximo ano letivo, ou seja, já a partir de setembro que vem, o ensino do Inglês passa a ser obrigatório desde o primeiro ano do ensino básico.

ena! nos Países da Commonwealth não se faz mais. nem melhor.
e sempre ficamos na companhia da Zâmbia, do Quénia, do Maláui e do Zimbabuè. por exemplo.

a propósito: onde está o "patriotismo" dos que assinaram a petição contra o Acordo Ortográfico? é que não enxergo neles qualquer incómodo pelo ensino obrigatório do Inglês a crianças portuguesas a partir dos seis anos de idade. pois, para quê o Acordo Ortográfico? o Inglês chega bem...

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ps: dois dias depois de ter escrito esta postagem, mais uma notícia encorajadora: o serviço de correio eletrónico do corpo diplomático sediado em Portugal passa a fazer-se em Inglês! e viva o velho. somos um Estado Europeu com oito séculos de História, um povo vaidoso da sua Língua e senhor de si. está-se a ver.
mas que merda é esta?

quinta-feira, 15 de maio de 2008

calvinismo moral fundamentalista

vivemos numa sociedade fundamentalista, intransigente e intolerante, e é tudo.
a mim não me faz diferença nenhuma que o primeiro ministro fume no avião, na cama, na banheira ou noutro sítio qualquer. é lá com ele. os jornalistas que o acompanham é que não têm defeito nenhum, não cometem erros, não fumam, não bebem, não comem, não nada. bufam. são umas florinhas de estufa, uns beatos, uns santinhos insípidos.
mas, é claro, o senhor primeiro ministro, que é fumador, é também, o secretário geral de um partido que pariu a lei mais intransigente que alguma vez houve em Portugal, desde 1140.
mas pior que tudo isso foi o pedido de desculpas e a promessa de deixar de fumar. essa atitude seráfica de cedência, de falta de brio e de personalidade vai custar-lhe caro. calou os fundamentalistas e os jornalistas mas perdeu a face. acanhou-se. não gosto de primeiros ministros assim.
e não estaremos numa sociedade em que os pedidos de desculpa se estão a tornar demasiado vulgares?
isto escrevia eu ontem.
mas, como era de prever, os fundamentalistas não se deram por satisfeitos. querem o primeiro ministro na praça pública. querem sangue e cheiro de carne assada.
e - pasme-se a loucura em que estamos mergulhados! - vem agora o primeiro ministro indignar-se com o calvinismo moral fundamentalista daqueles que lhe não perdoam os cigarros que fumou durante o voo para Caracas.
senhor primeiro ministro, esse é o resultado dos seus namoros com essa gente, calvinista para umas coisas, laxista para outras. entre a série de leis dispensáveis a que o senhor deu o seu aval político está a lei antitabágica mais calvinista da Europa. a qual vai conduzir, inevitavelmente, a que sejamos o país do mundo com os mortos mais felizes, mais saudáveis e de melhor qualidade de vida.
mas não tem sido o senhor a abrir todas as caixas de Pandora que lhe põem na frente? agora queixa-se de quê?

quarta-feira, 14 de maio de 2008

os medicamentos e a doença mental

hoje em dia toma-se por causa das doenças mentais, psíquicas e do ânimo, como queiram, um conjunto de processos bioquímicos implicados no modo de ação dos psicofármacos. quero dizer, o doente - diz-se - está doente por causa da serotonina, da noradrenalina, da dopamina, da acetilcolina, etc., etc., as quais não se encontram na concentração normal naqueles locais onde se dá a neurotransmissão. e para confirmar tamanha certeza lá vêm os artigos científicos explicar que este medicamento ou aquele interfere no processo bioquímico da transmissão do estímulo nervoso, fazendo repôr, ou imitando, o normal funcionamento da neurotransmissão dos estímulos.
com o devido respeito, o raciocínio em causa confunde tratamento com doença e doença com tratamento.
antes dos psicofármacos, tratava-se doenças psiquiátricas com choques insulínicos, sem que a insulina tivesse nada que ver com a doença mental. alguns doentes ainda hoje são tratados com eletrochoques, sem que se possa dizer que a doença mental é provocada por falta de eletricidade. mais atrás, tratava-se algumas agitações e inquietudes com banhos de água fria. e daí tamém não se podia concluir que a doença mental fosse provocada por falta de água fria.
dizendo de outra maneira: os medicamentos da psiquiatria são sintomáticos e inespecíficos. como a aspirina para a febre. o mecanismo de ação da aspirina nada tem a ver com a causa das doenças que provocam febre.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O Dicionário do IDT

o Instituto da Droga e da Toxicodependência acaba de dar à luz um manual a que deu o nome pomposo de Dicionário de Calão, o qual não é nem dicionário nem de calão, mas apenas um Vocabulário da Gíria dos Toxicodependentes. não entendo a iniciativa nem a sua utilidade. se é para os técnicos do Instituto mais facilmente poderem descodificar a gíria dos seus utilizadores, o dito Vocabulário bem podia ter ficado no interior dos gabinetes do Instituto, para proveito e exemplo de médicos, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos, secretárias, telefonistas, seguranças e técnicas de limpeza.
mas não é assim. a coisa fia fino. destina-se especificamente a jovens de idade superior a 11 anos...

...e estava eu escrevendo estas notas e zás!, o IDT desativa o "dicionário".
fez bem. mas teria feito ainda melhor se não tivesse tido necessidade de fazer bem.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

quatro mil contra o quê?

diz-se que corre por aí uma recolha de assinaturas contra o Acordo Ortográfico. e que já recolheu quatro mil assinaturas. pasmo:

- são quatro mil que acham que um Acordo Ortográfico vai mudar a maneira de falar,
- são quatro mil que pensam que se vai escrever "fato" em lugar de "facto",
- são quatro mil que julgam que o Acordo Ortográfico obriga a dizer "ônibus" em lugar de "autocarro", ou "celular" em lugar de "telemóvel",
- são quatro mil que julgam que a Língua Portuguesa é propriedade deles,
- são quatro mil analfabetos culturais que, na sua maioria, nem escrever sabem pela norma cessante,
- são quatro mil ignorantes,
- são quatro mil tristes.

perdão:
- são meia dúzia de pedantes,
- são meia dúzia de pequenos empresários livreiros com medo do Universo da Língua Portuguesa,
- são meia dúzia de atrasos de vida de que o país prescinderia com vantagem,

mas que estão dispostos a pôr o diabo em tribunal e deus na inquisição.

o pior é que se o Acordo Ortográfico falhar, falhamos todos nós: aqueles que assinam a recolha de assinaturas e a esmagadora maioria do País que não assinou coisa nenhuma.

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nota posterior, em 17/05:
afinal, não foram só quatro mil. foram trinta e três mil. a mesma meia dúzia de pedantes e pequenos empresários livreiros, com mais uns quantos basbaques para fazer a conta final. um folclore patético e parolo.
felizmente, o Acordo Ortográfico passou no Parlamento com uma folgada maioria e os votos contra dos patrioteiros do costume.
agora já posso dizer: a minha pena é que o Acordo seja tão minimalista.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

cannabis sativa

o senhor presidente do instituto da droga e da toxicodependência (idt) disse publicamente que da cannabis se podia extrair compostos com poder terapêutico em determinadas circunstâncias. mas disse, também - e mal andaria se o não fizesse -, que o consumo de substâncias ilícitas com base na canabis era muito perigoso. acontece que uma faixa influente da população, nomeadamente aqueles que fazem publicar e transmitir as notícias, fazem gala em perceber apenas metade da questão. raro é o jornal que não diga que o presidente do idt admitiu pela primeira vez os possíveis benefícios terapêuticos da canabis, fazendo-se de novas quanto ao essencial da mensagem: os perigos do consumo de substâncias ilícitas com base na cannabis sativa.
gostava muito de saber a quem aproveita esta mistificação.
imaginemos que o senhor presidente do idt admitia - e bem poderia fazê-lo - as virtudes terapêuticas da dedaleira, do estramónio e da Rauwolfphia Mirabilis. são plantas com um interesse terapêutico muito superior ao dos canabinóides extraíveis da canabis. mas se o dissesse, não estava com isso a autorizar o consumo dito recreativo de derivados dessas plantas. porque são, antes do mais, prosaicamente, venenosas.
então porquê esta mania de tentar meter pela nossa cabeça dentro as maravilhosas propriedades terapêuticas da canabis?
antes do mais, uma coisa são canabinóides, outra coisa é o haxixe, a marijuana, o kif, o chocolate.
os primeiros têm relativas propriedades terapêuticas, de interesse pouco mais que secundário. se o verdadeiro interesse fossem as propriedades terapêuticas da canabis, ninguém falaria disso, tão secundárias e até ridículas são essas propriedades terapêuticas. porém, o verdadeiro interesse é outro: tem propriedades terapêuticas, logo deve legalizar-se o consumo de canabis.
cá por mim, se a canabis tem propriedades terapêuticas, deveria era ser prescrita com receita médica e vendida nas farmácias. como os digitálicos, o estramónio e a reserpina. e nunca na rua ou nas discotecas.
e já agora, por mais que vejamos no dia a dia da profissão psiquiátrica os efeitos deletérios da canabis, com psicoses catastróficas e final apático e abúlico, é difícil fazer o diagnóstico e mantê-lo, tantos são os obstáculos ideológicos à constatação da realidade evidente.
propriedades terapêuticas da canabis? boa sorte!

terça-feira, 25 de março de 2008

pais, padrastos e afetivos

a enormidade do conceito de pai afetivo parece ter vindo pra ficar.
mas nunca esse dislate tinha chegado tão longe. uma psicojornalista queque teve a ideia peregrina de comparar São José àquilo que ela entende por pai afetivo e, desse modo, afirmar que o Dia do Pai, sendo Dia de São José, é, na realidade, o Dia do Pai Afetivo.
a ideia é revoltante porque quer trazer ao caso a religião, através de um vício de lógica ou sofisma aparentemente subtil. é que para os cristãos, sobretudo para os católicos romanos, anglicanos, coptas e ortodoxos, José não é pai afetivo nenhum. é padrasto: é o marido da mãe.
e é aqui que a senhora psicojornalista queque nos quer enfiar o barrete sob a capa de uma descoberta genial.
um padrasto é, ainda assim, um pai legal, alguém que tem um vínculo social de família com a progenitora. não é um pequeno burguês frustrado que deseja um filho já feito, escolhido depois de pronto, raptado, comprado, sei lá, como quem tem um caniche ou um gato siamês.
é antes alguém que, como na estória de José, segue todo o processo de gestação de uma vida nova. não há nada de queque na paternidade de José. nele, a afetividade está antes de ninguém voltada para a mãe da vida nova. porque a afetividade é uma coisa que leva tempo e consome energias.
além disso, falar de pai afetivo é um insulto: para a imensa maioria dos pais biológicos, para a imensa maioria dos padrastos e madrastas e para a imensa maioria dos pais adotivos. que investem nos seus filhos, enteados e adotados o melhor das suas energias afetivas. coisa que a senhora não está em condições de dizer a respeito dos pais afectivos de que fala.

tenho muita pena, mas não penso politicamente correto. pai afetivo não existe. pai afetivo é alguém que nem se dá ao trabalho de adotar. porque se adotasse, passava a pai legal e já não era necessário falar de pai afetivo nenhum. pai afetivo é um pai sem deveres. se bebermos na fonte onde a senhora vai beber, pai afetivo pode ser o raptor que se apaixona pela raptada. pode ser um traste. os trastes também têm afetos.

ninguém é filho de afetos. isso é uma treta pequeno-burguesa. eu sou filho da minha mãe e do meu pai.
não acho que ir à Somália ou ao Darfur comprar um menino ou uma menina por meia dúzia de dólares dê seja a quem for o estatuto de pai, por muito afetivo que seja.
senhora, pare para pensar e veja a enormidade que é falar de pai afetivo. já disse que até sei de quem são as suas ideias. digo-lhe francamente: é fonte má.

e pense bem se quer viver num mundo onde ninguém se sinta seguro com os filhos que tem, por causa dessa praga dos pais afetivos.

o diabo e o bom deus

de entre as bipolaridades que dão animação e vida ao universo, a maior é, sem dúvida, aquela que traduzimos por Deus e Diabo, ou, como dizem os zoroastrianos, entre Ahura Mazda e Angra Manyu, entre Luz e Trevas, entre Ordem e Caos. é uma forma simples de exprimir o sentimento de que tudo tem o seu oposto ou o seu complemento e que tudo existe entre um pólo e o outro.
mas a coisa levou entre nós umas voltas difíceis de entender. aquilo que era uma tensão natural entre a contenção e o prazer, entre a impassibilidade e a sedução, entre a racionalidade rigorosa e a irracionalidade desenfreada, entre a ordem pacífica e o caos tumultuoso, passou a ser uma dicotomia entre a virtude e o pecado, entre o prémio e o castigo, entre o céu e o inferno. desapareceu toda a faixa intermédia onde existe o equilíbrio e respetivos desvios mais ou menos aceitáveis. passou a ser uma questão de tudo ou nada, onde a questão é, simplesmente, de mais ou menos.
e, aqui postos, um forte contratempo se levanta: quem julga os nossos atos, quem decide do prémio e do castigo e quem os aplica consoante.
para os Egípcios, no Juízo Final, as almas eram pesadas e, de acordo com o peso das boas e das más ações em vida, assim Osíris fazia encaminhar a alma para a imortalidade ou para o esquecimento.
mas não assim entre nós. uma vez julgados no Juízo Final, assim Deus nos acolhe no Seu seio ou nos entrega às mãos do seu cósmico inimigo. e este, o Diabo, em vez de premiar a Seu modo aqueles que durante a vida O preferiram seguir, obedece cegamente às ordens de Deus, o Seu arqui-inimigo e vá de castigar sem peso nem medida os seus amigos pecadores.
e é aqui que a história me parece mal contada.

que caiba a Deus e ao Diabo, no momento final, arrebanhar cada qual os Seus amigos, ainda vá que não vá. sendo certo que o Céu e o Inferno não passam de opções cósmicas demasiado bipolarizadas, demasiado extremas. mas enfim, cada um que as escolha de acordo com o seu gosto pessoal. mas obrigar o Diabo a aplicar aos seus amigos os castigos de Deus é que não me cabe na cabeça. é como dizer que o Diabo não presta, que Deus faz dele o que quer, que no fim de contas a bipolaridade não existe e o Diabo não conta.

e, já agora, nós, os que andamos sempre pelo meio, mais coisa menos coisa, mais virtude menos virtude, mais pecado menos pecado, vamos para onde?

sábado, 19 de janeiro de 2008

carta a uma mãe desesperada

a senhora está farta, cansada, desesperada.
uma filha inerte, dependente, presa à vida pelos penosos cuidados que a senhora lhe dá.
ela vive porque a senhora a trata, porque a lava, porque a alimenta, porque a muda de posição várias vezes por dia.
uma filha a quem a senhora tem amor, um amor que toca as fronteiras do infinito. um amor revoltado, necessitado de compreensão e de ajuda para não se transformar em ódio. ódio que, de qualquer modo, traduzirá uma relação de afeto incontornável.
deu o alerta. chamou a atenção de todos nós. fez o seu papel.
mas meteram-na numa guerra que não é a sua.
eu não acredito que a senhora pense que matar-lhe a filha seja a solução. mas é isso que eutanásia quer dizer. com uma diferença: é matá-la sob a cobertura de um ato médico, de um procedimento hospitalar. ou seja, é matá-la sem que a senhora se sinta culpada de a matar. lava daí as suas mãos: "seriam eles a matá-la, não eu!"
como estão a enganá-la, minha senhora!
já lhe chega o vazio que sentirá quando a sua filha, finalmente, morrer de morte natural. um vazio impreenchível, que tem levado tantas mães ao suicídio. e à senhora estão a ensombrar-lhe ainda mais esse vazio com a culpabilidade de participar nesta farsa de campanha que não é sua.
não lhe dão tréguas, não tomam conta da sua filha, não lhe facilitam os cuidados, não assumem a despesa física, emocional e financeira de tão terrível destino.
dizem-lhe simplesmente que a solução é a eutanásia. levam-na à televisão, fazem de si uma heroína de uma luta que não é a sua.
a senhora não é uma pseudo-intelectual, não é uma Barbie dessas, não é uma burguesa bem pensante, não é uma mente politicamente correta. é, simplesmente, uma mãe desesperada.
quer ajuda, não quer a morte. nem a da sua filha nem a sua, pouco tempo depois.
tenha cuidado, porque aquilo que lhe estão a oferecer é a morte, não é a vida.
aquilo que lhe estão a oferecer é o suicídio.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

o transplante do senhor bispo

sua excelência reverendíssima, de 70 anos, foi submetido, domingo passado, a um transplante cardíaco. a intervenção correu bem e a evolução é favorável. espera-se que tenha alta dentro de duas semanas.
desejo, respeitosamente, as melhoras e o rápido restabelecimento ao ilustre representante do Altíssimo.
mas há um diabito malicioso que se me interroga: o bispo, um íntimo de Deus e dos Seus desígnios e vontades, de 70 anos de idade, posto frente ao destino último dos homens, escolhe viver mais dois ou três anos com o coração de um cristão já falecido ou prefere apresentar-se, serenamente, diante do Jardim das Delícias? pelo sim pelo não, parece que sempre é melhor ficar por cá mais um tempito.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

o aerotorto (2)

está aberto mais um capítulo da Grande Comédia Nacional. ao arrepio da lógica demográfica e com base em argumentos à medida dos objectivos, sabe Deus quais, foi tomada a "decisão preliminar": o Aerotorto de Lisboa vai ser construído a sul do Tejo. "decisão preliminar"! alguém sabe o que quer dizer "decisão preliminar"? quer dizer a "decisão das decisões", "a primeira de uma série de decisões", ou quer dizer "decisão para já", "decisão a ver no que vai dar ", "decisão até ver", isto é, uma "decisão faz de conta"?
é o que me está a parecer: uma decisão "cala a boca".
mas não calou a boca de ninguém. mais do que nunca, vem aí um coro de novas opiniões, de novos protestos, uma revolta de quem pensava uma coisa e lhe saíu outra, uma raiva incontida de uma população maioritariamente nortenha que é tratada como lixo face aos interesses de certos empresários da outra banda do Tejo e de meia dúzia de intelectualóides lisboetas para quem o aeroporto devia ser ao lado do quarto de dormir.
vêm agora os ambientalistas, que deviam ter falado antes. vêm agora os concelhos de Leiria, Batalha, Marinha Grande, Pombal, Coimbra, Cartaxo, etc., etc., que deviam ter falado antes.
eu compreendo: o disparate de um aeroporto a sul do Tejo é de tal ordem de enormidade que ninguém julgava possível um Governo, em seu perfeito juízo, ir na onda de construir um aeroporto em benefício de alguns associados da CIP e de certos intelectualóides lisboetas. mas a verdade é que neste mundo não podemos subestimar o patoá dos intelectualóides lisboetas nem o poder do dinheiro e a inteligência prática de quem o tem.
agora, só nos resta que esta "decisão preliminar" seja apenas "mais uma daquelas decisões que não decidem nada", só nos resta aguardar que a Confederação dos Patos e Aves Ribeirinhas do Estuário do Tejo consiga demonstrar ao Governo a enormidade da asneira, já que o Governo não viu até ao momento os inconvenientes que se desdobram uns aos outros antes de chegar ao reino das aves.
e há um inconveniente em que ninguém parece ter pensado: a dependência em que o aeotorto vai ser colocado. o seu acesso dependerá das pontes actuais e das que vai ser necessário construir. um tremor-de-terra, um ataque terrorista e zás. era uma vez um aerotorto por uma porrada de meses ou mesmo anos.
bem dizia eu que a melhor solução era o alargamento da Portela: ficávamos com um Aeroporto em condições e, de caminho, botava-se Lisboa abaixo.
e não será a altura de começarmos a saber quem votou neste Governo?

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

os fumadores passivos

depois de muito pensar, desisti. não entendo. diz-se para aí que morrem por ano 5000 fumadores passivos, quer dizer, há 5000 pessoas que regressam a casa de Deus-Pai por obra e graça dos que fumam. eu era capaz de acreditar se me dissessem onde arranjaram esse número, qual a metodologia e a qualidade das provas que o sustentam. mas nada. é um número à toa e pronto. morreram de acidente, de velhice cansada, deram-lhe um tiro, tiveram um AVC, um enfarte, uma galiqueira, cairam da escada abaixo? morreram num incêndio provocado pelo tabaco? estava a Urgência fechada? ninguém sabe. mas sabe-se, isso sim, que foi por obra e graça desses desgraçados que se dedicam a fumar.
e os não fumadores, impropriamente chamados de fumadores passivos, viram-se contra quem fuma como se neles vissem a face visível da Al-Qaeda ou do diabo. e enquanto nos viramos uns contra os outros por causa da merda do cigarro, deixamos de pensar em coisas bem mais importantes e mais perigosas para a manutenção e desenvolvimento da qualidade de vida. como a política de contenção orçamental e de liberalismo feroz que nos desgraça.
estamos na fossa, temos baixo poder de compra, os empregos estão sumindo por aí? que importa? os fumadores que paguem a crise económica, social, psicológica e política. não passam de cripto-templários e judeus ocultos. fora com eles.
eles são os culpados de tudo e o Estado ainda lhes cobra o imposto. pois claro.
mas eles não são culpados por fumar. são culpados por votar nessa gente que os proíbe.