sábado, 6 de setembro de 2008

o sistema imunitário

estamos habituados a conceber o nosso sistema imunitário como um ultrassofisticado dispositivo bélico, destinado a defender-nos de todos e quaisquer possíveis invasores. preocupamo-nos mais em descrever cada uma das células, humores, artimanhas e armadilhas de que se compõe, e cada uma das guerras e batalhas, vitórias e derrotas, e até os casos em que parece um estorvo, do que em compreender o próprio sistema imunitário e o seu significado.
antes de mais, o sistema imunitário tem uma função identitária, pelo que, se assim se pode dizer em biologia, a sua razão de ser é cultural. estabelece a diferenciação entre "eu" e "não eu" e as relações possíveis entre ser e estar no mundo.
numa metáfora antropológica, imaginemos uma tribo, uma comunidade humana, com a sua história, língua, costumes, cultura e antepassados comuns. a sua presença no meio tem como princípio elementar a preservação da identidade, simultaneamente ser e estar, sem o que a comunidade já não é "aquela tribo", "aquela comunidade", mas outra coisa ou mesmo coisa nenhuma.
confrontada com a presença do estranho, a tribo, para preservar a sua identidade, optará, conforme o caso, por combatê-lo ou aceitá-lo, integrando-o. a consequência do combate pode não ser a vitória. se derrotada, a tribo pode ser destruída fisicamente ou pode ser integrada noutra, perdendo a sua identidade.
formas intermédias são os tratados de cooperação ou complementaridade, que fazem com que comunidades estranhas decidam cada qual contribuir para sanar as carências da outra. no caso da imunidade, a possibilidade de floras estranhas habitarem o organismo e tornarem-se imprescindíveis à sobrevivência deste, como é o caso da flora intestinal. ou decidirem coabitar pacificamente, como no caso da flora da boca.
mas não só no estranho reside o problema. o inimigo pode vir de dentro. uma fação da tribo pode entrar em conflito com a tribo restante e desencadear uma luta pelo poder, que, em geral, acaba no prejuizo de toda a comunidade. no caso, o sistema imunitário entra em luta interna e o resultado são doenças auto-imunes, habitualmente graves.
finalmente, a tribo pode ser neutralizada por uma força política, administrativa e militar superior, que a obriga a aceitar a convivência forçada com tribos vizinhas ou estranhas. é o caso dos transplantes, em que o arsenal da medicina neutraliza o sistema de reconhecimento da identidade, forçando-o a aceitar órgãos estranhos.
o sistema imunitário é, pois, muito mais que um exército defensivo: é uma identidade e uma cultura, um ser e um estar no mundo da biologia.

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