quarta-feira, 6 de junho de 2012

a loja de arrumos

para que se pudessem precaver, há uns três anos que eu vinha alertando os meus internos da especialidade de psiquiatria para um futuro inexorável: a transformação do venerável hospital de Sobral Cid, uma instituição de peso na história da psiquiatria portuguesa, numa de duas realidades: a sua extinção pura e simples ou a sua degradação completa, sob a forma de loja de arrumações da psiquiatria universitária. o alerta cumpriu-se.
hoje, o ex-hospital de "Sobral Cid" (custa-me, evidentemente, chamar-lhe este nome) é aquilo por que a psiquiatria universitária há muito tempo esperava: o lugar onde esconder o terço do meio e o mau terço da lei de Black, as insuficiências e os maus resultados da abordagem "biológica" e "cognitivo-comportamental". o lado  tecnológico, bonito, exibível, limpo, "científico", para congressista ver, fica na psiquiatria universitária. os casos de "média duração", os "casos difíceis", os aborrecimentos intermináveis, escondem-se nos baixos da estrutura,  fora de portas, para que poucos vejam. e, ainda assim, sob o controle apertado dos doutores da ciência.
nós, os que trabalhámos nos antigos hospitais psiquiátricos, sempre convivemos com as nossas próprias insuficiências, sempre tivemos consciência dos limites da nossa arte, e até sempre tivemos a noção de que urgia uma profunda reforma da prestação dos cuidados de psiquiatria e saúde mental. sempre soubemos que o lugar dos doentes crónicos era noutro tipo de estruturas, residenciais e autonomizadoras, sob projetos de reabilitação virados para a realidade exterior, para a vida do mundo tal como ele é. sempre soubemos que os psiquiatras sozinhos não iriam a lado nenhum. que a organização multidisciplinar e transprofissional era a única possibilidade de intervenção. mas quanto a isso nada melhorou, pelo contrário. desapareceram os hospitais psiquiátricos mas não os doentes crónicos nem a sua degradação institucional, nem a forma de lidar com ela. se estavam em instituições públicas, mudaram para instituições privadas sob o mesmo modelo, mas sem as "complicações" e custos da transprofissionalidade. mudaram-nos sem qualquer preparação prévia, como se não tivessem história, relações, amizades, raizes. esconderam-nos. e, pior que isso, escondem agora também os doentes que não se "curam" em 10 dias ou que teimam em resistir às terapêuticas.
as próprias consultas externas, que enxameavam os lugares centralizados onde funcionavam, estão sendo agora espalhadas pelos vários  centros de saúde da região, sob a capa de uma espécie de "psiquiatria comunitária". já ninguém as vê ou vai ver. estão escondidas.
hoje já não temos uma "má psiquiatria" visível a olho nu. para a ver é preciso organizar uma excursão cuidadosamente planeada.
parece tudo melhor. mas está tudo na mesma ou pior.