domingo, 11 de março de 2007

os antergos (2)


é possível seguir a prática da trepanação desde o chamado Neolítico, mais concretamente desde a "Civilização" Megalítica. a trepanação é uma operação de cirurgia pela qual o operador retira uma rodela ou um quadrado de osso do crânio, deixando o encéfalo em contacto com a pressão atmosférica. se esta operação for feita em vida do paciente, o osso vai regenerar, tendendo a tapar de novo a abertura; se o paciente não sobrevive à intervenção, ou se esta for feita no cadáver, não há regeneração do osso e a abertura fica como foi feita.
conhecemos exemplos dos dois casos: crânios com e sem sinais de regeneração óssea.
como interpretamos essa realidade, tendo em conta que foi feita em era tão recuada?
a maioria acha que os nossos antigos pensavam de maneira diferente de nós. que faziam essas operações com um fim mágico. que, desse modo, libertavam a pessoa de maus espíritos.
a tese segundo a qual as trepanações feitas pelos cirurgiões pré-históricos tinham por finalidade a abertura de uma saída para os "maus espíritos" não se deve aos próprios cirurgiões pré-históricos que as fizeram, mas sim a Broca, um médico francês do Séc. XIX, que, tanto quanto eu sei, nunca terá falado com eles.

a prática da trepanação, à qual muitos dos operados sobreviveram, estava muito difundida na França Meridional, na Cultura do Sena-Oise-Marne, no estuário do Tejo e na área geográfica da "Civilização" Megalítica; quero dizer, além do Sudoeste de França, as Ilhas Britânicas e a Região Galaico-Portuguesa.
não vai há cem anos que a trepanação era feita por pastores alemães e montenegrinos nos seus animais com epilepsia e outras disfunções neurológicas. e, pela mesma época, um indígena da Oceania gabava-se de ter feito mais de duzentas trepanações no gado.


José Leite de Vasconcelos escreveu, em 1897: "a hipótese de que com a trepanação pré-histórica se expulsava da cabeça um elemento morbífico não é gratuita, apoia-se em factos de observação moderna. sem dúvida, em certos casos, a trepanação pode ser explicada cientificamente, e produzir efeitos satisfatórios, como, por exemplo, numa fractura de crânio quando os fragmentos cranianos, irritando ou comprimindo uma ou outra zona do encéfalo, causam imediatamente ou passado tempo, quer acidentes epileptiformes, quer fenómenos paralíticos, convulsões, contracturas, estado comatoso ou delirantes perturbações mentais".

a hipótese de Broca, sendo apenas a visão progressista e darwiniana do seu século, rapidamente se tornou certeza sem precisar de mais confirmação. bem disse Wittgenstein que estamos condenados a viver numa jaula de palavras. assim que saem da boca ou das pontas dos dedos, as palavras enredam-nos como teias de aranha, de onde passamos a vê-las como coisas.

que faziam esses cirurgiões pré-históricos das suas trepanações? que instrumentos utilizavam? sobre que porções da massa encefálica intervinham? e o que quer dizer "dar saída a espíritos", "a deuses", "a demónios"? não é desses temas que falam as vozes que atormentam os nossos psicóticos?

a Psico-Cirurgia moderna nasceu na primeira metade do séc. XX, pela mão de Egas Moniz e de Freeman. Egas Moniz mereceu por esse facto receber o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia. com essa técnica pretendia tratar doentes mentais agressivos e violentes, possuídos por forças biológicas maléficas.
mas que diferença faz falar de "dar saída a espíritos malignos" ou "pacificar alienados agressivos e violentos", como pretendiam os pais da Psico-Cirurgia?

e já nos nossos dias, há cerca de 40 anos, surgiu uma espécie de seita cujos membros se fazem trepanar, no que acham grande expansão das suas capacidades mentais. falam eles da "abertura da terceira visão"...

ao olhar para trás, temos a tentação de interpretar os factos à luz de um paternalismo doentio, segundo o qual nos achamos mais capazes, mais inteligentes, mais hábeis, mais homens e mais mulheres que os nossos devanceiros - de cuja humanicidade duvidamos tanto mais quanto mais nos precederam no tempo.
mas eles, os antigos, não param de nos surpreender.
como dizia Rosalia,

"bem sei que nom hai nada novo
em baixo do ceo"...

Sem comentários: